Só se fala em cortar, cortar, e o Brasil parou, afirma economista
Em períodos de crise econômica, uma das possíveis saídas, segundo explica a economista Ana Luíza Matos de Oliveira, é que o governo aumente o investimento público para tirar a economia do buraco e melhorar a arrecadação, ampliando o público consumidor e a renda do cidadão. Na contramão, no entanto, o Brasil sofre com o que ela qualifica de “uma barbárie”: a união de medidas autoritárias com a adoção de uma política fiscal de austeridade, caracterizad pelo desmonte de políticas sociais, com cortes na Saúde e Educação.
As consequências do modelo de austeridade vão desde o aumento da desigualdade social e do desemprego — com a queda na qualidade de vida da população — até a substituição de políticas universais para outras mais privatistas e precarizadas, analisa a professora visitante da Faculdade Latinoamericana de Ciências Sociais (FLACSO) e doutora em Desenvolvimento Econômico (Economia Social e do Trabalho) pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) que defendeu a tese “Educação Superior brasileira no início do século 21: inclusão interrompida?”. Ana Luiza também é consultora da Fundação Perseu Abramo e integra o Grupo de Conjuntura da entidade.
Junto com os economistas Pedro Rossi e Esther Dweck, Ana Luíza organizou o livro Economia para Poucos – Impactos Sociais da Austeridade e Alternativas para o Brasil, publicado ano passado pela editora Autonomia Literária. Em entrevista ao Brasil de Fato, ela afirma que a política fiscal de austeridade piora os problemas que se propõe a resolver. O corte de verba das universidades federais é o ataque social mais recente, estabelecido pelo governo de Jair Bolsonaro (PSL).
A economista também cita a Emenda Constitucional (EC) 95, que condiciona, por 20 anos, os investimentos públicos ao reajuste da inflação. Para Oliveira, é mais do que urgente revogar o teto de gastos, assinado em 2016 pelo governo de Michel Temer (MDB). Segundo ela, a política de congelamento é a “constitucionalização da austeridade”.
De maneira tardia, a educação só aparece como direito legítimo na Constituição de 1988. O artigo 212 estabelece que “a União aplicará, anualmente, nunca menos de 18%, e os estados, o Distrito Federal e os municípios 25%, no mínimo, da receita resultante de impostos, compreendida a proveniente de transferências, na manutenção e desenvolvimento do ensino”.
Assim, ao definir a limitação do crescimento da despesa pública à inflação, a EC 95 rompe com os princípios que norteiam a Carta Magna. Conforme estudo de Esther Dweck e Pedro Rossi, ao longo do tempo, o valor mínimo destinado à educação cai em proporção das receitas e do Produto Interno Bruto (PIB). “Na simulação apresentada, com a EC, o mínimo para educação seria de 14,4% da receita líquida de impostos em 2026, e 11,3% em 2036”.
Ademais, a passos galopantes, entre desempregados, subocupados, desaltentados e pessoas que não estão trabalhando por outros motivos, o Brasil conta com 28,3 milhões de pessoas subutilizadas. O recorde histórico foi divulgado no último dia 30 de abril pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
Confira a entrevista na íntegra:
Brasil de Fato: Quais são os impactos sociais da austeridade e como ficam os princípios básicos da Constituição de 1988 com essa política fiscal?
Ana Luíza Matos de Oliveira: Desde 2015, temos no Brasil uma adoção de políticas de austeridade, desde que o governo Dilma (PT) mudou a política econômica a partir do segundo mandato. E essa austeridade faz com que o governo corte cada vez mais gastos, que ele tente reduzir o seu papel como indutor do desenvolvimento e do planejamento da economia. Isso levou o Brasil a entrar em uma espiral muito negativa de crise, a um aumento de estagnação econômica, a uma depressão profunda, que a gente teve em 2015 e 2016.
Nós podemos até questionar se o Brasil, de fato, saiu da crise em 2017 e 2018, porque, apesar de a gente ter saído do vermelho em termos de crescimento do PIB, para os trabalhadores, essa recuperação da crise não ocorreu. Continuamos com níveis de desemprego muito altos e percebemos pela qualidade de vida das pessoas que a crise não acabou. Tanto que um dos maiorres “empregadores” da economia brasileira são esses aplicativos de entrega, o que está muito ligado ao serviço pessoal e também a uma questão da desigualdade nossa do Brasil. São empregos de péssima qualidade.
Ou seja, desde 2015, o Brasil foi se enredando em armadilhas que vão ampliando o poder dessa austeridade. A gente teve, primeiro, a reforma trabalhista — que nessa ideia de redução dos direitos, do papel do Estado e da regulação — buscou reduzir direitos a fim de, supostamente, gerar empregos. Na época, se falava que a gente ia gerar seis milhões de empregos formais. E a gente não teve essa geração de empregos formais.
Na verdade, a gente teve um certo alívio da taxa de desocupação desde 2017 por um crescimento da informalidade e porque muitas pessoas desistiram de procurar emprego, então elas deixam de contar como desocupadas. E o que a gente tem agora, no primeiro trimestre de 2019, é um recorde da taxa de subutilização, 28 milhões estão subutilizadas, que é o conjunto de pessoas desocupadas, pessoas que desistiram de procurar emprego e pessoas que trabalham poucas horas na semana.
Então, a gente percebe que, no mercado de trabalho, a coisa está gravíssima. Outra questão que foi proposta pelo governo desde esse período foi a Emenda Constitucional 95, que também engessa o orçamento, especialmente o gasto social. E que contribui para que a crise, inclusive a crise de arrecadação do governo, se amplie. Porque, por exemplo, têm estudos do Ipea que mostram que R$1,00 que se gasta em educação retorna para os cofres do governo em cerca de R$1,85. Então, você gasta com Educação, mas isso retorna com impostos. Porque você está pagando o salário do professor, você está pagando as contas que mantém a escola e, além de você estar gerando outros benefícios, que é o próprio investimento em Educação para os estudantes e para as famílias.
E os governos Temer e Bolsonaro aprofundam isso, não?
Eles foram nessa onda de cortar gastos e nos colocou em um buraco sem fundo mesmo. Porque, cada vez que ele corta mais gastos, ele corta mais a sua arrecadação, ele piora o estado da economia e o resultado disso vemos, no primeiro trimestre de 2019, uma redução do nosso PIB de 0,2%. Então, a perspectiva também é muito ruim. E aí nesse campo, o que esse livro Economia Para Poucos – Impactos Sociais da Austeridade e Alternativas para o Brasil tenta trazer, que foi organizado pelo professor Pedro Rossi, pela professora Esther Dweck e por mim, nós tentamos nesse livro trazer um pouco do debate dos impactos sociais da política fiscal, dos impactos sociais que a austeridade tem, que esse corte de gastos traz. Porque a gente considera também que a política fiscal é uma política pública como qualquer outra. Então, a gente não pode ter dogmas, tabus para discutir a questão da política fiscal também. A gente precisa também debater quais são os impactos sociais da política fiscal. É uma política pública também.
E é uma coisa que ficou completamente fora do debate. Muito se fala que precisamos ser responsáveis com as contas públicas e tudo mais, só que essa responsabilidade que eles estão fazendo, desde 2015, ela não está dando certo. A economia, de fato, não saiu do buraco, há uma deterioração da qualidade dos empregos, vemos impactos sociais nas vidas dos brasileiros, na renda, no acesso aos direitos sociais e na distribuição de renda desses cortes. Porque esses cortes, em geral, eles são feitos em gastos que são benéficos para a grande maioria da população. Então, quando você corta na educação superior, você está cortando gastos para um espaço que se democratizou muito nos últimos anos. Quando você está cortando na saúde, você está deixando de atender a população pobre, por exemplo, com o SUS, e você está tendendo a aumentar a desigualdade também. Porque tem estudos também que mostram que quando o Estado gasta em saúde e educação Pública, ele está reduzindo a desigualdade, porque é como se as pessoas que têm acesso à saúde e educação públicas deixassem de gastar com aquilo, ele aumenta a renda disponível das pessoas. Então, quando o Estado corta esse gasto, ele está, na verdade, contribuindo para ampliar a desigualdade. E diversos outros gastos, então, aqui no livro, a gente discute também o impacto dos cortes nos gastos ambientais que causa um aumento do desmatamento.
O presidente Jair Bolsonaro afirma ser um “contingenciamento” e não “cortes”. O que esperar desse cenário?
A questão de ser corte ou contingenciamento, de fato, para a gente ser justo, é um contingenciamento, que é um bloqueio de recursos que pode ser revertido caso a receita do governo cresça mais do que eles esperam que vá crescer hoje, caso ela venha maior do que eles esperam que venha para o ano de 2019. Só que estamosn vendo que as previsões dos economistas ligados ao mercado, se não me engano, foi a 13ª vez que ela foi revisada para baixo. Eles começaram o ano falando que a gente ia crescer 3% e, agora, a gente chega a última previsão do mercado foi de 1,23%. Então, em 13 semanas que eles estão fazendo esse corte consecutivo. E aí, junto com o corte do PIB, da expectativa de crescimento do PIB, você tem o corte de expectativa do crescimento das receitas também.
A verdade é que, olhando o cenário até o fim do ano, a gente pode quase que com 100% de certeza afirmar que esses contingenciamentos serão cortes. Porque a receita do governo não vai crescer mais do que o que se espera hoje. Na verdade, pode ser que a gente tenha mais cortes ainda, porque é possível que a estimativa para as receitas do governo este ano, caiam ainda mais. Então, na verdade, esse dilema se é corte ou contingenciamento é um pouco retórico, porque, de fato, é um contingenciamento, teoricamente, mas ele vai ser, na prática, um corte. Porque as receitas do governo não vão aumentar, porque a economia está piorando.
Sobre o tema educação golpeada, retrocesso na educação básica e a inclusão interrompida no ensino superior. Que impactos isso pode trazer nessa democratização durante anos direcionada ao ensino superior? Programas como Prouni, Sisu, Fies… As universidades públicas têm um papel muito importante para a classe pobre. Saiu até uma pesquisa que mostra que mais de 70% das pessoas que estão nas universidades federais são de baixa renda. De fato, esses cortes afetam a população mais vulnerável, mais pobre? É um alinhamento que mostra que esse governo não vai olhar para essa população?
No início do século XIX, a gente teve uma ampliação muito grande do orçamento para a educação superior. E aí, com a ampliação desse orçamento para a educação superior, foi possível fazer diversos programas, diversas políticas públicas: o Prouni, o Reuni, que expandiu muito as universidades federais, ampliou a política de assistência estudantil, o Fies, a política de bolsas com a CAPES e o CNPq, fez outras modificações como a política de cotas, as ações afirmativas e o ENEM, o uso do ENEM como exame para entrada na universidade. Tivemos diversas políticas que visaram incluir pessoas com o perfil menos elitizado na educação superior e que, de fato, tiveram um impacto muito forte. Temos diversos estudos que vão analisar o perfil dos estudantes por renda, o perfil dos estudantes quanto à raça, regional também, eles mostram que houve uma ampliação dessa inclusão na educação superior.
Eu fiz alguns cálculos sobre os dados federais que mostram que, de fato, vivemos uma expansão muito forte dos negros na educação superior, assim como de alunos não só das universidades públicas, mas como estudantes de graduação como um todo, dos negros, dos estudantes mais pobres. E aí, de 2015 para frente, que é quando a gente tem a crise econômica — que afeta a capacidade das famílias de manter parte de seus integrantes na educação superior — e quando a gente tem o corte de diversas políticas públicas, que ocorre a partir de 2015, alguns dados já são um pouco ambíguos. Então, de 2015 a 2017, a gente já vê algumas modificações na tendência, ou uma estagnação dessa inclusão na educação superior, e em alguns casos uma reversão.
Na prática, a austeridade que foi aplicada a partir de 2015 — com esse efeito muito grande que ela teve no mercado de trabalho e com o corte nas políticas — afetou a inclusão na educação superior. Não temos, hoje, um quadro tão desigual quanto em 2001, mas reduziu bastante o ritmo de inclusão.
O patamar de endividados atingiu o maior patamar em quatro anos. O que isso tem a ver com a renda das famílias, com o desemprego? O aumento dos endividados tem relação com o desemprego crescente? Que análise você faz disso, já que os devedores são essa população pobre?
Tem a questão dos tipos de políticas públicas que foram feitas também. Então, uma questão a se ponderar é que parte dessa expansão que a gente teve na educação superior nos anos 2000, ela foi também baseada, com ajuda do setor privado, vamos dizer assim, com braço no setor privado, por exemplo, com o Prouni e o Fies. Com isso, tanto o setor público quanto o setor privado no início do século 21 cresceu muito, então, durante esses 15 anos, de 2001 a 2015, manteve-se mais ou menos essa porcentagem de que 70% dos estudantes na educação superior, hoje, eles estão no setor privado. Os dois setores cresceram muito. E aí, por um lado, os estudantes que tiveram acesso à educação superior em instituições públicas, eles não vão ter que pagar nada além dos seus impostos, que já pagaram, enfim, para financiar a instituição. Agora, os estudantes que são egressos de instituições privadas, eles depois tem que arcar com esse custo. E aí agora nesse quadro do mercado de trabalho muito ruim, que as pessoas estão com as perspectivas profissionais muito ruins, então isso se coloca como um problema, do pagamento dessas dívidas. As pessoas já entram no mercado de trabalho com uma dívida muito grande.
Que balanço você faz da reforma trabalhista, que passou a vigorar em novembro de 2017?
Desde a entrada em vigor da reforma trabalhista, não se observa uma melhoria significativa no emprego formal. O Henrique Meirelles falou, à época, que seriam gerados 6 milhões de empregos e, na verdade, não chegou nem perto disso. O emprego formal não teve um suspiro, nem mesmo um suspiro depois da aprovação, da entrada em vigor da reforma trabalhista. O que vimos foi uma ampliação da informalidade desde então, que não tem nada a ver com a reforma trabalhista, que são vínculos informais, um aumento do desalento, das pessoas que estão desistindo de procurar emprego. E, com isso, chegamos a um recorde de subutilização da força de trabalho, que são as pessoas que desistiram de procurar emprego, as desocupadas e as que trabalham poucas horas na semana e gostariam de trabalhar mais: um recorde histórico de 28 milhões de pessoas.
Percebemos, então, que a reforma trabalhista, de fato, não gerou o resultado esperado, Cortar direitos, cortar gasto social, não leva a uma melhoria da economia, porque, ao contrário, os empresários só vão contratar mais gente, ou só vão surgir novos postos de trabalho, porque a demanda aumenta. O empresário não vai decidir investir porque ele vê que as contas do governo estão em ordem, ele vai decidir investir se ele ver que tem demanda pelo produto que ele quer vender, pelo serviço que ele quer oferecer. Essa ideia de que você cortar cada vez mais direitos, cortar gastos e dinheiro que está circulando na economia, vai ser bom, é um tiro no pé.