Um livro sedutor e abusado, por isso talvez um tanto inconsequente, Aos Nossos Amigos – Crise e Insurreição propõe uma chacoalhada na reflexão daqueles que hoje se espantam com a apatia pública diante do horror crescente sem, no entanto, terem até o momento assimilado as manifestações de junho de 2013 nem tampouco admirarem seus resultados mais visíveis.

Disponível aos leitores brasileiros desde 2016, o livro chegou a sua segunda edição quase despercebido pela crítica especializada. Apresentado como um texto escrito a várias mãos, numa tendência presente em nichos de nosso mercado editorial, notadamente o da análise política, o livro foge à mesma tendência por não trazer em sua capa nomes de organizadores e colaboradores. Assina-lhe, de maneira supostamente despretensiosa, um tal Comitê Invisível, de origem francesa.

Em busca de uma argumentação convincente, o que logra na maior parte das quase trezentas páginas, Crise e Insurreição espalha, como pilares vistosos de um edifício, frases que poderiam muito bem se candidatar a rodapés de todo tipo e até mesmo a drágeas de conhecimento típicas dos nossos tempos digitais.

“Em certos lugares, como na França, a inexistência de forças revolucionárias suficientemente confiantes em si mesmas abre caminho àqueles cuja única ocupação é justamente simular a autoconfiança e de apresentá-la como espetáculo: os fascistas. A impotência amargurada”, ataca o texto, logo em sua introdução.

Seria talvez essa falta de autoconfiança uma das explicações para a diminuta manifestação ocorrida no último domingo, em São Paulo, que se pretendia e deveria ser um gigantesco grito contra os oitenta tiros disparados de um quartel do Exército, que vitimaram uma família negra, cumpridora das leis e das expectativas sociais? Ou mesmo para a dimensão aquém das expectativas dos protestos organizados por ocasião de um ano de prisão de Lula?

Afinal, os oitenta tiros de fuzil ainda pipocam como uma manifestação estúpida do horror que aponta, somado ao anêmico, por ora, repúdio coletivo, para a escalada de sua imposição sobre nossas cabeças. Era de se esperar que a manifestação de domingo na Avenida Paulista, convocada pelas redes sociais por coletivos do movimento negro, rivalizasse, em número de público, com a audiência do zero a zero que ocorria naquela mesma tarde no estádio do Morumbi.

 

Capa do livro. Edição com acabamento manual simula que exemplar teria sido chamuscado durante protestos

Créditos: Divulgação

Outra hipótese para a apatia dos últimos dias pode ser encontrada em mais uma das sedutoras construções do livro – sedutoras porque aparentam explicar tudo, mas nem por isso menos sérias: “A profusão cotidiana de informações – alarmantes para uns, apenas escandalosas para outros – molda nossa apreensão de um mundo globalmente não inteligível. Seu aspecto caótico é a névoa de guerra por trás da qual ele se torna inatacável. É por meio de seu aspecto ingovernável que ele é realmente governável. É aí que está a malícia.”

É por esse caminho, o da crise permanente, dada como estado indissociável do mundo, que o livro faz sua principal provocação. As crises seriam forjadas, e não efeitos colaterais, para justificar a permanente necessidade de estabelecer governos capazes de manobrá-las. Almejar ser governo seria, assim, moldar-se ao jogo. “Eles querem nos obrigar a governar, mas nós não vamos cair nessa provocação”, diz o título de um dos capítulos, inspirado em pichação de muro vista em Oaxaca, México, durante protestos ocorridos em 2006.

O vexame imposto em 2015 pelas autoridades europeias ao Syriza, partido de esquerda no governo da Grécia, é citado como episódio de crise imposta, como se não houvesse alternativa, para que os gregos sedentos por dignidade servissem de exemplo. Algo semelhante à farsa de que o Brasil teria quebrado em 2014, mesmo que os indicadores econômicos negassem o veredito forjado pela mídia.

A ameaça constante de crise faz com que a imensa maioria, às vezes sem mesmo saber, disponha-se a defender o sistema, como num filme de zumbis, segundo o livro. A disputa por quem ocupará o governo leva invariavelmente à defesa das instituições tal como existem.

Ao propor a recusa ao governo, o livro já não consegue esconder a inspiração anarquista de seus autores. Isso, no entanto, não invalida algumas de suas proposições, aplicáveis ao caso brasileiro. A necessidade dos insurgentes é pensar algo novo. “Não há movimento revolucionário sem uma linguagem capaz de exprimir, ao mesmo tempo, a condição que nos é apresentada e o possível que a fissura”, diz outro trecho.

Escrito em 2014, no embalo das grandes manifestações ocorridas anos antes em diferentes países, o livro saúda as mobilizações, mesmo sem conhecer os desdobramentos que viriam. É na gênese das mobilizações populares que os autores enxergam o potencial transformador.

 

Manifestação contra os 80 tiros

Crédito: Isaías Dalle

 

O encontro das pessoas nas ruas, a redescoberta da convivência, a solidariedade das cozinhas coletivas, a proteção do outro, todos elementos capazes de sacudir a ordem. “Não é o povo que produz o levante, é o levante que produz seu povo, suscitando a experiência e a inteligência comuns, o tecido humano e a linguagem da vida real que haviam desaparecido”.

O livro não foge do risco, concretizado tantas vezes ao longo da história, de que as mobilizações descambassem para ideários das elites dominantes. “Os fascistas são os únicos que não se desculpam por viver como vivem”, afirma o texto, apontando o que seria o elemento-chave para que o poder saiba reconduzir a direita, sua representante natural, aos postos de governo, canalizando a insatisfação popular.

O antídoto para aqueles que o texto chama revolucionários seria, além do apego meticuloso a valores éticos, traduzido pelo exemplo, o abandono da defesa cega de princípios etéreos como a democracia, chavão que pode servir a propósitos os mais diversos. Em nome da “liberdade de expressão” ou da “felicidade”, as pessoas se entregariam à servidão voluntária. Ideias como a maldade intrínseca do gênero humano e sua estupidez serviram, lembra o livro, tanto a déspotas como aos chamados pais da democracia estadunidense.

O que os enormes protestos que eclodiram a partir de 2008 teriam a expressar, originalmente, era o profundo desconforto com o modo insuportável como o mundo está organizado. O desafio dos que querem mudar isso seria pregar algo para além do crescimento do PIB, do consumo, das plataformas de governo.

Embora defenda a necessidade premente de os revolucionários conhecerem as novas ferramentas da tecnologia, o livro, que provavelmente tem entre seus autores jovens endiabrados conhecedores das passagens secretas dos castelos digitais, não aponta neste teatro de guerra o espaço onde se dará a derrota ou a vitória dos que querem mudar o mundo, uma vez que esse é o jogo deles, do capital.

Para os autores, o fato de o capital não ter conseguido produzir computadores iguais aos homens, fez com que tentasse impor o empobrecimento da existência humana, da amizade. Estar junto mudaria tudo, como nas ocupações de escolas em 2016, no Brasil. Caminhando para sua conclusão, o livro entrega um conceito-síntese: comunas.

“Se houve um só ensinamento dado pela rua no decurso das últimas insurreições foi o de uma iniciação à alegria que vale por qualquer educação política”, lê-se em outro trecho.

Construir mundos, essa é a luta. O oposto seria uma vida espectral.

Ingênuo? Pode ser. Não aponta uma conclusão científica? Certamente. Mas alguém duvida da necessidade de novas utopias como programa político ou da volta às bases – ou periferias, para recorrer a termo mais contemporâneo – como ferramenta de transformação?

Ficha
Aos Nossos Amigos – Crise e Insurreição
Editora: N-1
Preço: R$ 34,20

 

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