Faz um ano que Luiz Inácio Lula da Silva está preso. Algumas questões sobre este acontecimento devem interpelar todos os brasileiros democratas, justos e solidários. A primordial delas: por que Lula está preso? Os inimigos políticos de Lula, de imediato, vão responder à primeira questão afirmando que ele é corrupto. Mais que isso, que ele é o chefe da corrupção. Mas qualquer pessoa minimamente perspicaz sabe que esta resposta não se sustenta. Para isto nem é preciso afirmar a inocência de Lula. Qualquer pessoa informada sabe que a corrupção tem, infelizmente, longa tradição no Brasil. O poder colonial português e as classes dominantes brasileiras sempre se alimentaram das corrupções e dos privilégios. Não é sério afirmar que a corrupção seja recente no país.

Também a relação entre corrupção e prisão não se sustenta por diferentes motivos. Se fosse verdade que o destino dos corruptos no Brasil é sempre a prisão, as cadeias estariam ainda mais superlotadas. Teriam de estar lá: Aécio, Alckmin, Bolsonaro, Dallagnol, Doria, Fernando Henrique, Paulo Guedes, Maluf, Moro, Serra, Temer e muitíssimos outros. Inúmeros deles com provas cabais de corrupção, mas nunca escancaradas pela mídia e/ou investigadas pelo poder judiciário. Todos eles e muitos outros continuam livres e, pior, ocupando lugares de poder.

Portanto, a corrupção não explica a prisão de Lula. Somem-se a tudo isso diversos agravantes. Primeiro, não existem provas robustas contra Lula. Segundo: os volumes de recursos mencionados nas acusações contra Lula são ridículos se comparados a qualquer um dos casos citados acima. Terceiro: as pirotécnicas operações contra corrupção têm se mostrado contaminadas por interesses políticos, quando não são inteiramente submetidas as manipulações e disputas políticas. Quarto: a nomeação de Moro como ministro da Justiça e da Segurança Pública deixou escancarada sua parcialidade e, mais que isto, demonstrou de modo indiscutível a recompensa recebida pelo serviço prestado de excluir o candidato Lula do pelito eleitoral de 2018 e viabilizar a vitória de Bolsonaro.

A prisão de Lula é política. Não só para excluí-lo da disputa eleitoral, que provavelmente venceria, mas para destruir sua liderança política e o projeto de Brasil que ele representa. Lula, goste-se ou não, expressa um projeto político distinto daquele que hoje move as classes dominantes brasileiras. Elas desejam a subordinação do país ao governo Donald Trump e aos interesses norte-americanos. Elas buscam avidamente manter os privilégios das classes dominantes, além de ampliar a exploração dos subalternos para aumentar a imensa concentração de riqueza, uma das marcas mais perversas do Brasil. A destruição das políticas sociais, educacionais e culturais é parte deste projeto excludente de Brasil. Mas esta explicação ainda é insuficiente para esclarecer plenamente a prisão de Lula, apesar de denunciar o caráter profundamente antidemocrático das classes dominantes brasileiras, incapazes de manter sua dominação pelo recurso à hegemônica política-cultural em uma democracia liberal.

Necessário explicar porque um presidente conciliador como Lula, que buscou todo tempo contemporizar políticas para as classes dominantes e para as classes populares, sem estimular o atrito ou acirrar as contradições entre elas, foi tratado deste modo pelas classes dominantes, inclusive por setores delas que muito ganharam em seus governos e por segmentos dominantes incrustados no estrutura de Estado, a exemplo dos poderes Judiciário e Legislativo. Seria compreensível tal atitude das classes dominantes se Lula se comportasse como um líder revolucionário radical, cujo governo expropriasse a riqueza das classes dominantes.

Longe disso, o caráter conciliador dos governos Lula rendeu a ele muitas críticas da esquerda e da extrema-esquerda. A atitude dos dominantes escancarou a luta de classes e demonstrou que as classes dominantes brasileiras não admitem na presidência da República alguém que não seja originário delas. O mal-estar da presença na presidência de um operário, mesmo como políticas conciliadoras, foi nítido. Para elas, as classes subalternas têm que saber seu lugar. Inadmissível um trabalhador, um dominado, um excluindo ocupar a presidência do país.

A violência de classe, por visceral e implacável que seja, ainda não explica integralmente a cruel perseguição e prisão de Lula. Somado ao ódio e preconceito de classe, existe um componente individual e desafiador no caso Lula. Ele não foi só um trabalhador que chegou à presidência, mas comandou um projeto que, mesmo perpassado por inúmeras contradições, acenava para um outro país: mais acolhedor, justo, democrático, diverso e participativo. Um projeto que não naufragou em suas muitas ambiguidades, mas foi capaz, entre outros, de incorporar milhões de pessoas ao mercado de trabalho e ao mercado consumidor; combater a fome; diminuir a desigualdade; contemplar a diversidade social e cultural brasileira; ampliar o acesso da população aos cursos técnicos e universitários; apoiar a ciência e tecnologia; garantir amplas liberdades; aprofundar democracia, inclusive participativa, no país e integrar o Brasil no mundo, na América Latina e Caribe e na América do Sul. Ou seja, com todas as ambiguidades e contradições, foi o início de um projeto de mudança do presente e do futuro do Brasil. A superação do completo de vira-latas e a esperança no país tornaram Lula um dos maiores presidentes de toda história, uma liderança muito querida dos brasileiros e um nome reconhecido em todo mundo.

A capacidade e o discernimento pessoal de Lula em projetar um país sem desigualdades, sem privilégios, mais democrático e mais criativo e, mais ainda, em conseguir dar os passos iniciais nesta direção, por certo, irritou ainda mais as classes dominantes, já descontentes com sua ousadia de classe. Já não se tratava de ocupar a presidência, mas de fazer o país trilhar um outro projeto, distinto do Brasil excludente e cheio de privilégios das classes dominantes. Impossível aceitar tal perigo: um trabalhador, um popular, um excluído ser protagonista de uma mudança de horizontes guiada por um amplo projeto de país acolhedor para todos, ainda que perpassado por ambiguidades e contradições e por duvidosas possibilidades de desenvolvimento, inclusive por conta da atitude hostil das classes dominantes. Ou seja, de ele conseguir algo que os dominantes não foram capazes e desejaram realizar.

Daí a perseguição brutal e a prisão de Lula. Daí o ódio a Lula; a todas suas políticas sociais, educacionais, científicas, culturais; e aos segmentos que, por meio de lutas e de políticas, emergiram naquele Brasil diverso. A mídia protagonizou uma das mais brutais e maiores campanhas político-midiáticas já vistas contra um político e seus aliados. Lula, o PT, os partidos de esquerda e os movimentos sociais foram acusados, desqualificados, destruídos e (pré)julgados, cotidiana e sistematicamente. A perseguição jurídica a Lula não foi menos agressiva. Procedimentos, ritmos, jurisprudências foram alteradas de maneira escancarada e sem respeito às leis para prender Lula. Em suma, as classes dominantes, seus representantes e aparatos, funcionaram com um furor inusitado para destruir, simbólica e fisicamente, Lula. Isto explica não só a prisão ilegal de Lula, mas a brutalidade e a ferocidade como o ex-presidente tem sido tratado em um dos mais perversos escândalos midiáticos, jurídicos e políticos já assistidos no Brasil.

Em lugar do país que buscava ser inclusivo, diverso, plural, livre, inteligente, criativo, o que se vive hoje no Brasil produzido pelas classes dominantes é: corrupção, perseguição, repressão, violência, brutalidade, mediocridade, subserviência e desesperança. Mais uma vez as classes dominantes recorreram à ruptura com a democracia para fazer retroceder o país. Neste novo velho Brasil, a prisão arbitrária de Lula não significa apenas a prisão injusta de um ser humano admirável, capaz de vencer as enormes dificuldades de uma vida excluída e de ousar se colocar entre as lideranças do país, com sua inusitada inteligência e capacidade políticas. Significa a prisão da liderança política que encarna como ninguém um projeto diferente de país.

A liberdade de Luiz Inácio Lula da Silva é o mínimo gesto humano de justiça com relação a um dos presidentes que mais fizeram pelo povo brasileiro e pelo Brasil. Sem a liberdade de Lula não se supera o Estado de exceção imposto pelo golpe midiático-jurídico-parlamentar de 2016 e aprofundado pelas eleições fraudulentas de 2018. Sem a liberdade de Lula não se pode reestabelecer a esperança de um novo e outro Brasil. Toda a cidadania brasileira – democrática, justa e solidária –, independente de suas preferências partidárias e políticas, deve compreender o que significa a luta por Lula Livre hoje: um gesto humano de justiça e solidariedade e um instante vital para a luta por um outro e melhor Brasil.

Antonio Albino Canelas Rubim é professor e pesquisador de Universidade Federal da Bahia, ex-secretário de Cultura da Bahia.

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