Hoje faz um ano. Um ano que o Brasil se chocou com o assassinato da vereadora do Psol do Rio de Janeiro Marielle Franco e seu motorista Anderson Gomes.

Mas por que, num país onde se matam mais de sessenta mil pessoas ao ano, segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP); que é campeão mundial em assassinatos de defensores de direitos humanos, com frequentes os casos de homicídios por motivações políticas, segundo relatório lançado em 2016 pela Ong Oxfam; por que esta morte específica se diferencia?

A comoção foi nacional e internacional. No dia seguinte à execução, centenas de milhares de pessoas tomaram as ruas do Rio de Janeiro e de diversas capitais do país. O tema foi manchete de principais jornais estrangeiros. O sentimento geral era de dor e indignação. “Quem matou Marielle? Quem mandou matar?” foram, provavelmente, as perguntas mais pronunciadas em 2018.

Um ano depois, dezenas de manifestações estão marcadas para manter viva a memória desta mulher pobre, periférica, negra, lésbica e para exigir a apuração e justiça para o caso. Marielle era conhecida pela sua atuação em direitos humanos, pelos combates à violência policial e à atuação das milícias, participando ativamente da investigação parlamentar contra milicianos (desde quando era assessora do parlamentar Marcelo Freixo).

Por isso, desde o início, crime com motivação política foi o principal eixo de investigação. Grupos de milicianos eram alvo que mereciam atenção.

No início desta semana, foram presos o policial militar reformado Ronnie Lessa, de 48 anos, e o ex-policial, Élcio Vieira de Queiroz, de 46 anos. Segundo o Grupo Especial de Combate ao Crime Organizado (Gaeco) do Ministério Público, Lessa teria sido o autor dos disparos, enquanto Élcio estaria dirigido o veículo do crime.

Os assassinatos ocorreram quando o Rio estava há quase um mês sob intervenção federal, tendo como responsáveis pela segurança pública do estado o general do Exército, Walter Souza Braga Netto, que respondia diretamente ao então presidente Michel Temer.

A origem das milícias
Milícia é um termo cunhado pela jornalista do jornal O Globo Vera Araújo em 2005. Segundo ela, a palavra era mais curta que paramilitares (expressão usada na época) e assim soava melhor para estampar a manchete do jornal que trazia sua reportagem sobre este grupo de agentes de segurança que cobravam pedágio em territórios e serviços públicos na cidade. Foi no início dos anos 2000 que grupos de policiais e ex-policiais começaram a chamar a atenção da opinião pública.

A origem das milícias, no entanto, é mais antiga, data do final da década de 1970, quando, na Favela do Rio das Pedras (zona oeste do Rio) comerciantes começaram a pagar policiais para garantir que o tráfico não dominasse o território recém-ocupado. O grupo se fortaleceu e passou a oferecer e a cobrar, além de segurança, outros serviços, como gás e transporte. Os pagamentos passaram a ser obrigatórios, sob pena de castigos violentos em caso de descumprimento. Com o tempo, assim como as facções do tráfico, os milicianos começaram a impor toques de recolher e regras rígidas às comunidades.

Até certo momento, esta atividade tinha apoio de parcela da população que, mesmo coagida, dizia preferir pagar a milícia que ter que conviver sob o domínio do tráfico. César Maia, quando prefeito, chegou a chamá-las de “autodefesas comunitárias” e um “mal menor que o tráfico”. No entanto, milicianos seguiam se fortalecendo e passaram a se organizar em zonas eleitorais, elegendo políticos e a tendo influência sobre o poder público. A atividade se estruturou enquanto tal e o grupo cresceu tanto que hoje, segundo matéria do G1 que cruzou informações do Ministério Público estadual, da Polícia Civil, da Secretaria de Estado de Segurança (Seseg) e do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), estima-se que quadrilhas estão em 37 bairros e 165 favelas da Região Metropolitana, atuando em um quarto da cidade do Rio. A percepção popular sobre elas também mudou: a última pesquisa do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e do Instituto DataFolha apurou que cariocas tendem a ter mais medo de milícia que do próprio tráfico.

O contexto da Intervenção
Em 16 de fevereiro de 2018, o governo Temer decretou (com posterior referendo do Congresso Nacional ) uma intervenção na área de segurança pública no estado do Rio de Janeiro. O Interventor, que passou a ter papel de secretário estadual de Segurança Pública, foi general do Exército, Walter Souza Braga Netto. Ele tinha o comando direto sobre as polícias estaduais, sobre o Corpo de Bombeiros e sobre a Secretaria de Administração Penitenciária e respondia diretamente à Presidência da República – e não mais ao governador. A intervenção teve duração de dez meses.

O Observatório da Intervenção – organização que reuniu uma série de entidades, coordenada pela faculdade Cândido Mendes e financiada pela Open Socity – divulgou um relatório dos dez meses de atuação dos militares na cidade. O que foi apresentado como resultado positivo? Houve uma queda de 5,5% nos homicídios dolosos, em comparação ao mesmo período anterior; e 14% menos de roubo de cargas. Este último dado foi muito comemorado pelos militares (sic).

Mas, existem motivos para comemorar? Nem tanto. O relatório também aponta que, nas 668 operações monitoradas, houve 204 mortos pelas mãos do Estado; além de 53 chacinas (um total de 213 motos), 1.203 pessoas mortas no Rio de Janeiro neste período, aumento de 40% nas mortes em ações policias. Mais 1.090 feridos e 103 agentes de segurança mortos. Ainda houve aumento expressivo nos tiroteios: de 5.238 de fevereiro a dezembro de 2017 para 8.193 no mesmo período de 2018, volume 56% maior. E também de 3,9% nos roubos comuns. Além disso, outros órgãos da sociedade civil denunciam uma série de abusos e crimes cometidos pelos agentes como estupros, casas invadidas e a prisão de inocentes. O número de desaparecidos também aumentou.

Com mais de duzentos mil agentes e 72 milhões de reais investidos ao longo de dez meses, a intervenção não deixou absolutamente nada como legado para a segurança pública do estado. Nada foi investido no que diz respeito a inteligência, estrutura para investigação e desmantelamento do crime organizado, das facções, das milícias, do tráfico de drogas e de armas.

A investigação do assassinato de Marielle Franco e Anderson Gomes
O assassinato de Marielle e Anderson põe em evidência estas fragilidades do sistema de inteligência da segurança pública do estado do Rio. Como já dito, após quase um ano de investigação, foram presos, no início da semana, os suspeitos pela execução dos dois, o ex-PM Élcio Vieira de Queiroz e o sargento reformado Ronnie Lessa, possivelmente pertencentes ao grupo miliciano Escritório do Crime. A arma utilizada foi uma submetralhadora alemã HKMP5 de calibre 9 milímetros, usada por forças especiais da polícia. A munição pertencia a um lote comprado pela Polícia Federal de Brasília, em 2006. Balas desse lote foram extraviadas. Elas foram também usadas em chacinas em Barueri e Osasco, na Grande São Paulo, em 2015, e em São Gonçalo, no Rio, entre 2015 e 2017.

A respostas da investigação param por aí, mas a prisão destes suspeitos suscita ainda mais perguntas que não parecem ter perspectiva de solução a curto prazo.

Uma reportagem publicada na Revista Piauí desta semana que conta ao leitor como se estruturaram as milícias no Rio e revela tentativas de interferência na investigação do crime de assassinato termina com a seguinte frase: “O crime se espalhou pelo poder constituído do Rio. Tem bancada. É uma metástase sem controle. O estado não sai mais dessa situação por suas próprias mãos”

E não é muito difícil chegar a esta conclusão. Ora, se a milícia é formada por policiais e ex-polícias; se o próprio governador do Rio de Janeiro, Wilson Witzel – que comanda as polícias – participou de atos contra homenagens a vereadora assassinada, parece óbvio que a investigação apresenta sinais de comprometimento e possibilidade de envolvimento e obstrução.

E nesse bolo todo, algumas perguntas ainda permanecem sem resposta: como um ex-PM, com vencimentos incompatíveis com alto poder de compra, reside num condomínio de luxo no Rio com casas na faixa de 2,5 milhões de reais? Qual a abrangência de um esquema de tráfico de armas que garante 117 fuzis M16 americanos? Quem e por que tentaram induzir o também miliciano Orlando de Curicica a mentir sobre o caso? Afinal, a quem mandou matar Marielle e por quê?

Em se tratando da gravidade do caso e das evidentes tentativas de impedir as investigações, especialistas defendem que o caso seja transferido para a investigação e justiça federais.

As famílias das vítimas e toda sociedade brasileira seguem atônitas esperando e lutando por explicações, justiça e por uma política que tenha condições de encarar os desafios de segurança pública que estão colocados.
Marielle, presente!

`