Viemos das regiões mais remotas da nossa indignação. Viemos em nome dos que vivem do salário. Do trabalho, num mundo que decretou a morte do trabalho. Viemos não apenas para chorar nossos mortos. Lavar a lama que submergiu seus corpos. 176 corpos resgatados e identificados: banhá-los um a um com o sal das lágrimas para restituir-lhes o rosto, os nomes. 134 desaparecidos: gravar no metal a memória para que não se percam seus nomes e permaneçam acesos para queimar o sono dos responsáveis e dos cúmplices.

Viemos fundir no metal os nomes dos assassinos porque os assassinos também têm nome. E deixar que o metal perpetue o grito desta tarde, com o grito do silêncio mineral que alcançará os olhos e os ouvidos das gerações: houve um crime no coração de ferro de Minas. Numa pequena cidade: Brumadinho. Uma paisagem que abriga sonhos, séculos, arte e metais, no vasto coração de Minas.

Viemos lavar a pedra de Minas, porque a pedra de Minas sangra sob nossos olhos. E aqui, depois do apocalipse de 25 de janeiro de 2019, o silêncio é um crime. Costurar as vozes de todos os que não se renderam ao silêncio oficial e tecer essa polifonia que brota da garganta dos inconformados: como podemos tratar de outros assuntos no dia seguinte, com o grito dos soterrados martelando nos ouvidos?

Viemos de muitos lugares para dizer ao país: a Vale tem coração de metal. A Vale tem dentes de metal que mastigam o quotidiano de nossas vidas, enquanto produzimos, agora a VALE dissolve na lama a vida dos soterrados.

A Vale injeta na paisagem o sangue do metal que envenena a água dos rios. Alguém se recorda do sangue lamacento do Rio Doce, há menos de três anos lançado no mar? O que fizemos com nossa memória? Onde dormíamos quando se rompeu a barragem de Mariana e nos calamos? 826 quilômetros, a lama de Mariana percorreu pelo curso do rio Doce até o mar.
Onde estão os responsáveis? Dando entrevistas. Oferecendo explicações. Quantos foram punidos? Ninguém. Três anos depois, ninguém foi condenado pelo crime ambiental de Mariana.
“A Vale é uma joia. A joia não pode ser condenada por Brumadinho…”

Gira no país a produção industrial da indiferença. Como se recebêssemos doses maciças de anestesia. Uma anestesia que nos paraliza, nos torna invulneráveis à dor do outro. Indiferentes diante da catástrofe e do crime. O que faremos com o alumínio alterado encontrado no sangue dos bombeiros de Brumadinho?

Há uma tragédia humana continuada. Mariana, Brumadinho, qual será o nome da próxima? O fio da continuidade ata indiferença e impunidade. Há um crime contra a natureza. Contra as gerações que não nasceram. Um crime continuado, que se prolonga alimentado pela impunidade.

300 quilômetros de contaminação no rio Paraopeba. 176 mortos identificados, 134 desaparecidos não merecem a reverência de pé em um minuto de silêncio?

O corpo de Fernanda foi identificado sob a lama do Refeitório da VALE. Estava grávida. A criança de Fernanda não nascerá.

A lama é a metáfora do país.

É a lama, é a lama, é a lama …. como na canção de Jobim.

O Brasil será a lama? Depende de nós.

 

`