Pesquisa qualitativa realizada pela Fundação Perseu Abramo mostra que para a maioria das pessoas o intitulado “empreendedorismo” é, na verdade, uma luta desesperada e diária pela sobrevivência, muito distante do mito de “liberdade” e de “trajetória de sucesso”.

O estudo, realizado ao longo do segundo semestre de 2018, revisitou 16 anos de trajetória laboral de 31 trabalhadores e trabalhadoras de diferentes regiões do Brasil. Pela extensão do tempo analisado, os resultados demonstram igualmente que não é a experiência e o aprendizado que necessariamente trarão melhoria das condições de vida para quem não têm vínculos empregatícios formais.

“A instabilidade permanente vira uma forma de vida para esses trabalhadores que estão na informalidade”, comenta Ludmila Costhek Abílio, coordenadora da pesquisa. “Essas pessoas fazem inúmeras coisas ao mesmo tempo e podem mudar tudo no dia seguinte. Isso que estão chamando de ‘empreendedorismo’ nada mais é que uma gestão para garantir a sobrevivência. Se a pessoa que está na informalidade não fizer isso, ela morre”, completa Ludmila, doutora em Ciências Sociais pela Unicamp, onde trabalha como pesquisadora no Centro de Estudos Sindicais e Ciências do Trabalho.

Participaram da pesquisa trabalhadores e trabalhadoras da construção civil, motoboys, vendedores ambulantes, manicures e trabalhadoras domésticas.

Esse levantamento realizado pela Fundação Perseu Abramo também identificou os impactos das novas tecnologias na vida dessas pessoas, o surgimento de novas formas de associativismo em alguns desses setores e o aprofundamento da solidão em outros.

A queda do padrão de rendimentos e o aumento das horas dedicadas ao trabalho a partir de 2016 é outra conclusão da pesquisa. Desde o impeachment de Dilma Rousseff, as condições do mercado se deterioram, como demonstrado por diferentes índices econômicos e sociais e confirmado pelo testemunho dos pesquisados.

Essa tendência de maior esforço e menores resultados deve se ampliar a partir da chamada reforma trabalhista, que institucionaliza a precarização do trabalho, legalizando-o, e também se for aprovada a reforma da Previdência proposta pelo atual governo, vista por analistas como um estímulo à informalidade.

Carteira assinada?
Outra característica comum aos entrevistados é não ter mais no horizonte a expectativa de um trabalho com registro. “Não é que eles não querem ter carteira assinada. É que eles sabem que na condição deles, com a qualificação que eles têm, o trabalho que vão conseguir é para ganhar menos e talvez trabalhar mais e ser mais explorados”, comenta Ludmila.

“Claro que esse trabalhador ou essa trabalhadora não está pondo na ponta do lápis a aposentadoria, férias, FGTS. São formas de aprofundamento da exploração, e não de liberdade. Não se tem uma poupança de médio e longo prazo. Não há rede de proteção”, completa a pesquisadora. “Vivem apenas o momento. Isso não é positivo”, afirma.

Para definir a condição de vida dessas pessoas, a imensa maioria moradora das periferias, Ludmila tem recorrido a um termo cunhado pela pesquisadora Vera Telles, que foi sua orientadora de pós-graduação: viração.

 

Créditos: José Cruz/Agência Brasil

 

Essa condição, quando associada ao tema da Previdência, forma um quadro ainda mais sombrio. A maior parte dos entrevistados não contribui para a Previdência. A proposta de reforma previdenciária do atual governo vai aprofundar o desestímulo à participação no sistema, uma vez que prevê forte aumento no tempo de contribuição e redução no valor das aposentadorias e pensões. O trabalhador tenderá a considerar que não vale a pena pagar a Previdência. Ou não terá mesmo recursos para contribuir individualmente.

Associativismo

O cenário também impõe mudanças nas formas de cooperação entre os trabalhadores de cada um dos segmentos. Ludmila detectou, nas entrevistas, que as pessoas estão recorrendo ao improviso. “Os motoboys, por exemplo. Eles estão se organizando a partir de demandas específicas. No facebook eles criam uma comunidade, porque um deles conhece alguém do poder público local e fecha uma negociação”, conta ela.

Já as domésticas têm o ônibus como um local de socialização e politização, pois os deslocamentos entre casa e trabalho são oportunidades de conversa e trocas. As manicures experimentam um período de maior solidão política, em virtude dos aplicativos de mensagens pelos quais marcam atendimento diretamente com as clientes.

O caso dos motoristas que trabalham para aplicativos é marcado por jornadas que podem chegar a 16 horas diárias, sem alimentação nem descanso. “Esse autogerente trabalha cada vez mais para garantir o sustento, não é alguém que administra o tempo. Ele é um escravo daquela coisa”, define Ludmila.

Periferia é o espaço

Léa Marques, do projeto Reconexão Periferias da Fundação Perseu Abramo, comenta que “são os moradores das periferias os sujeitos protagonistas dessa forma de trabalho em que tem que se virar pra sobreviver, à sua própria sorte ou azar”.

“Acho que um dos pontos centrais que a pesquisa revela é que sob o discurso do novo empreendedorismo individual o que se verifica é o antigo padrão de trabalho informal, com jornadas de trabalho longuíssimas, mais de 10h por dia, péssimas condições de trabalho, especialmente quanto à saúde e riscos de vida a que esses trabalhadores se expõem, e sem nenhum direito trabalhista”, comenta a socióloga e consultora do projeto.

Além disso, segundo Léa, a promessa de que as novas tecnologias seriam libertadoras não se confirmou. “No início parecem muito atrativas, como para as manicures, por exemplo, mas para os motoboys, que já estão há mais tempo sofrendo esses impactos, as condições de trabalho só pioraram, incentivando inclusive a disputa entre eles por corridas”.

Para Ludmila e Léa, o desafio é compreender essas realidades e planejar novas formas de abordagem e organização, não mais baseadas apenas no binômio informal-formal, que já não dá basta para explicar nem para enfrentar as condições do mercado de trabalho.

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