“As milícias já atuam no tráfico e áreas nobres do Rio”, diz líder comunitário
A ação violenta, opressora e ilegal das milícias já ultrapassou o território das favelas e está presente em áreas nobres da cidade do Rio de Janeiro, informa Thainã de Medeiros, liderança do Coletivo Papo Reto, grupo de combate aos abusos policiais que atua no Complexo do Alemão. São as chamadas “pequenas milícias”, com a mesma origem das demais.
Ele também afirma que as milícias já estão fazendo tráfico de drogas em algumas áreas em que atuam, apesar de terem ganhado força com um discurso moralista e conservador que prometia, entre outras coisas, o fim do comércio de drogas na favela.
Thainã, museólogo e jornalista, é um dos criadores do Coletivo Papo Reto, surgido no final de 2013 para auxiliar vítimas de uma série de deslizamentos de terra e desmoronamentos ocorridos no Alemão. Muito rapidamente, o coletivo descobriu o potencial do trabalho em rede para ajudar os moradores a se proteger de ações ilegais das polícias civil e militar nas favelas. O Coletivo é colaborador do projeto Reconexão Periferias, da Fundação Perseu Abramo.
O líder comunitário destaca que ações governamentais como a implementação das UPPs (Unidades de Polícia Pacificadora) fortaleceram política e territorialmente as milícias. E que em áreas comandadas por essas organizações criminosas não é possível a organização de coletivos de cunho social ou político, sob pena de morte.
Acompanhe os principais trechos da entrevista
Conte um pouco sobre o início do projeto de vocês.
Quando a gente começa a atuar o que tinha aqui era o Exército. Antes, cada um fazia o seu corre, tal. E no final de 2013 teve uma grande chuva aqui no Complexo do Alemão, desmoronaram muitas casas. E a gente se organizou para ajudar as famílias. Nisso a gente percebeu que sabia usar as redes sociais para fazer mobilização. Isso foi em dezembro. Depois, em 2014, a gente decidiu continuar fazendo essa mobilização, mas desta vez mais voltada para a violência de Estado. Aí tinha UPP, muita violação de direitos acontecendo aqui, então começamos a fazer este trabalho.
Você pode descrever um pouco como vocês se organizam, como ocupam o território e como fazem para transmitir as informações?
É muito por whatsapp mesmo. A gente tem grupos de whatsapp, passamos as informações pros moradores e a gente conversa com eles. Os moradores conversam entre si e essas conversas têm muita matéria, muito conteúdo. A gente coleta aquilo ali, apura a informação, vai ao local para entender o que está acontecendo, e isso vira nossa comunicação em rede.
Tipo avisando “cuidado, em tal local está ocorrendo neste momento abuso policial, violência”, é isso?
Sim. Isso é uma coisa que muitos moradores já fazem mesmo. A gente nem precisa pedir, eles se avisam, e isso é bastante rico.
E como tem sido a relação aí com as milícias? Elas têm sido o principal agente de violência contra o morador, ou não?
Aqui no Complexo do Alemão só tem uma facção (Comando Vermelho). A milícia é bem longe daqui, na verdade. Ficamos na zona norte do Rio. A grande atuação da milícia é na zona oeste. Bangu tem muita, Baixada Fluminense tem muita. A única milícia que se tem notícia aqui na zona norte é num pedacinho da Maré. Aqui no Alemão sempre teve só uma facção e o território aqui é muito grande, pra tomar aqui seria muito difícil.
Teria de ocorrer uma guerra de grandes proporções…
Sim.
E lá na Maré há coletivos semelhantes fazendo um trabalho parecido? Vocês têm contato com eles?
Conheço sim, mas são pessoas que atuam num pedaço da Maré onde não há milícias. Para quem mora em área de milícia, o silêncio costuma ser muito maior. É muito difícil alguém que mora em área de milícia dar entrevista. As milícias surgem com a cobrança de taxas dos moradores. Tem a taxa do gás, tem uma taxa de segurança – muito parecido com a Máfia né, por exemplo, você tem um comércio, você paga uma quantia para que seu estabelecimento não seja assaltado. Então elas estão muito próximas da vida do morador. Em algumas áreas, se você quiser fazer uma festa dentro da sua casa, você tem que pagar para as milícias uma taxa. Eles são mais diplomáticos no sentido da intimidação. Não há uma ostentação de violência, mas eles dão o recado uma vez só: e o corpo não aparece. A pessoa simplesmente desaparece. E todo mundo sabe disso. Então é muito difícil. Eu tenho contato de pessoas na Maré, e quem eu conheço lá que mora em área de milícia já perdeu familiares para as milícias. E não fala sobre isso. É um outro nível de violência. Muito grave.
Eu vou fazer uma pergunta bastante absurda. Mas para quem está aqui do lado de fora, quem não convive aí, talvez ela faça algum sentido: o que é melhor, ou o que é menos ruim? Conviver numa área dominada pelas milícias ou conviver numa área dominada por facções? Ou dá no mesmo, é igual?
Eu nunca vivi numa área de milícia. Mas te adianto que, segundo relato de pessoas que moram, o silêncio é muito maior. Quando as milícias começaram a aparecer, elas vieram com um discurso de que elas estavam acabando com o tráfico, que era uma coisa autogestionável, que os moradores iam se organizar e não teria mais violência. Só que essa metodologia começou a cobrar para acabar com a violência. Violência que eles próprios promovem. Hoje em dia, até drogas eles vendem. Então, se você parar para pensar, o tráfico de drogas lucra muito, mas a única fonte de lucros dele é a venda de drogas. E compra droga quem quer. Milícias, se você mora ali naquela área você tem de pagar eles. Se você é viciado ou não, tem de pagar. Eu aqui, entro e saio da minha casa, eu passo por gente armada e ninguém mexe comigo. Se fosse em área de milícia, além do aluguel da casa que eu moro, eu ia ter de pagar uma taxa. Imagine uma pessoa muito pobre, que situação. Mas tem outra situação também: eles entrarem na tua casa, na vida íntima da pessoa. Você quer dar uma festa e têm de pedir permissão e pagar uma taxa para as milícias. Isso nunca acontece aqui no Complexo do Alemão. Aqui as ruas são usadas para celebrações. É muito comum o morador fazer festa e fechar um pedacinho do beco ali. Coloca um pula-pula, faz uma festinha. Você não vê isso em área de milícias. Quem é mais conservador pode até achar mais organizado, mas é opressão do mesmo jeito. Se uma pessoa morre, morreu e acabou. Um coletivo como o Coletivo Papo Reto jamais existiria numa área de milícia. A gente já estaria morto.
Não é possível a organização de coletivos para atuação social ou com cunho político em área de milícias?
Não, não conheço nenhum. E quem é militante e mora nessas áreas, milita em outros locais, não onde mora. Circula por áreas de favela mas não se reúne lá onde mora. Porque tem medo. O máximo que pode acontecer é um evento muito chapa-branca: uma festinha do Dia das Crianças e pronto acabou. E sobre essas áreas tem um controle político muito grande. É interessante para quem está no poder conhecer o chefe da milícia que está ali nessa área. Vamos supor, eu sou candidato: é interessante seu eu conseguir combinar com a milícia que só eu posso ir ali fazer campanha e meus adversários, não. Isso significa muitos votos, muita gente me apoiando. Não é à toa que Marielle foi assassinada. Os suspeitos são milicianos ligados a vereadores, deputados e, aparentemente, presidente. É muito complicado. É um local que ninguém quer cutucar. Quem mora nessas áreas, realmente, não tem voz.
Thainã é um dos criadores do Coletivo Papo Reto
É possível notar alguma diferença na atuação das milícias depois do assassinato da Marielle e, depois, com a eleição do atual presidente?
Eu ainda não falei, e provavelmente todo mundo já sabe, mas as milícias são compostas por policiais civis e militares, bombeiros, seguranças de presídio e outras forças de segurança. São a polícia, embora a gente saiba que tem meninos jovens das comunidades entrando nesse tipo de negócio também. A gente sabe disso. Mas o que aconteceu aqui no Complexo do Alemão é que depois da eleição do presidente os policiais aqui saíram dando tiros para o alto, comemorando a vitória do Bolsonaro. Isso já quer dizer muita coisa. Eu só vi algo parecido em vídeo do Estado Islâmico. E aí é importante também lembrar: o que significou as UPPs atuando aqui por tanto tempo? A UPP aqui no Compexo do Alemão significou um monte de policiais aqui dentro o tempo todo. Quantos desses policiais não tinham ligação com as milícias? Quantos desses policiais não viram naquele momento uma oportunidade para colocar a milícia aqui dentro do Complexo do Alemão? Você imagina o Estado dando apoio para que uma facção criminosa entrasse numa favela? Se você pensar que milícias são formadas por policiais e você patrocina isso, você vai entender que o Estado brasileiro, e o Estado do Rio de Janeiro, patrocinou isso. Eu posso adiantar pra você que naquela época da UPP aqui eles faziam pichações das milícias nas paredes, no interior do Complexo, e tinham algumas práticas de milicianos, como por exemplo a tentativa de taxar comerciantes.
Então eles tentaram, via UPPs, implementar as milícias no Alemão, mas não conseguiram por causa da forte presença de quem comanda o tráfico.
Fica difícil afirmar isso, porque eu não tenho provas. Mas nós aqui testemunhamos várias práticas de milicianos que tentaram aplicar aqui. Tentaram taxar o gás… Práticas de milícias que me fizeram pensar nisso: quanto que as UPPs não eram uma forma de tentar implementar a milícia por aqui. Eu tenho dúvidas sobre o quanto colocar Exército aqui, na Maré, depois colocar as UPPs, o quanto isso não fortaleceu politicamente as milícias que depois assassinaram a Marielle e que depois foram homenageados pelo presidente da República. Acho importante a gente levar isso em consideração. E lembrar que esses grupos chegaram com um discurso profundamente conservador e moralista: que ali agora não tinha mais tráfico, não tinha mais putaria. Tudo isso em nome da família brasileira. Todo um discurso conservador que a gente vê hoje concretizado na figura de um presidente. Existe uma outra coisa no Rio de Janeiro chamada pequena milícia.
O que é isso?
Na zona sul você vai encontrar isso, no centro você vai encontrar isso. Você vai encontrar um segurança de rua com um jaleco escrito “apoio”. Muitos desses caras são milicianos. Eles agem igualzinho à Máfia: chegam no comerciante, se apresentam. Se o comerciante não der uma colaboração, coincidentemente no mesmo dia o estabelecimento comercial é assaltado. E o cara vai lá no estabelecimento comercial no dia seguinte e oferece de novo proteção por um preço estabelecido.
Mesmo em áreas com forte presença das facções eles conseguem ter essa atuação miúda?
Eu não estou falando de favelas agora. Estou falando de área nobre. Eu estou falando em Leblon, estou falando do Centro do Rio de Janeiro, Cinelândia, Largo da Carioca. E qual o discurso que eles vendem? Porque a classe média carioca decide contratar esses serviços? Eles contratam por causa do discurso que o Rio de Janeiro é uma cidade extremamente perigosa. Eles compraram o discurso de que aquele pretinho que está andando ali vai assaltar eles. Aí eles pagam esses caras pra expulsar os pretinhos que estão ali. Eles têm medo do pobre. Eles têm medo da favela. Olha, isso saiu no jornal inclusive: ano passado, em Laranjeiras, os caras chegaram lá e ofereceram um serviço de segurança pra eles. Os moradores se reuniram depois, à noite, e recusaram a parada. No dia seguinte, uma agência do banco Itaú foi assaltada. Pode procurar depois “assalto Itaú Laranjeiras” no google (leia mais aqui) O banco Itaú foi assaltado. Um dia depois os caras voltaram lá e perguntaram: “Olha, vocês têm certeza de que não querem pagar mesmo pelo nosso serviço de segurança?”. Então você vê como é essa intimidação. E isso foi zona sul do Rio de Janeiro.