Os ventos que embalaram a juventude de Marx
Em 2018, novas biografias de Karl Marx vieram a público em comemoração aos duzentos anos de seu nascimento. Entre elas, a que mais chamou atenção foi o primeiro volume de uma biografia em três partes escrita pelo alemão Michael Heinrich, cientista político, professor das universidades de Berlim e de Viena e colaborador do projeto MEGA (publicação das obras completas de Marx e Engels).
Com acesso a inúmeros documentos inéditos e até recentemente desconhecidos, o trabalho de Michael Heinrich se destaca por oferecer ao leitor partes e peças da obra e da vida de Marx que são de inestimável valia para o debate contemporâneo em torno dos sentidos do pensamento marxiano.
Neste volume específico – Karl Marx e o nascimento da sociedade moderna – o autor se dedica a investigar os primeiros vinte e quatro anos de Marx, período sobre o qual pouco se conhece, principalmente porque são escassos os seus escritos na época e, do pouco que ele escreveu, muito se perdeu. Por isso, Heinrich vai buscar referências indiretas sobre Marx, escarafunchando as raras correspondências dele com seus amigos e familiares e também as menções a sua vida ou suas ideias que aparecem nas cartas de outros ou em registros oficiais.
Neste esforço de arqueólogo de escaninhos – por vezes excessivamente obcecado – Michael Heinrich traz a luz alguns elementos importantes que ajudam a dirimir certas mistificações que muitos de seus biógrafos anteriores foram disseminando a partir das muitas lacunas que cercavam os primeiros anos da vida de Marx. Entre outras coisas, fica explícito, por exemplo, que ao contrário do que sugeria Edmund Wilson em Rumo a Estação Finlândia, a visão de mundo de Marx não é tão marcada por sua origem judaica, nem muito menos por uma suposta perspectiva de gueto. Na verdade, a família de Marx estava bastante adaptada ao ambiente cultural da Renânia naquele início de século 19, não seguia qualquer rito religioso e sequer comemorava as datas sagradas dos calendários judaico, cristão ou protestante. Como já mostrava a biografia de Marx escrita por Jacques Attali (Karl Marx ou o Espirito do Mundo) a família Marx era muito mais influenciada pelos ventos da Revolução Francesa, além do humanismo e do classicismo que predominavam nas escolas e universidades tedescas durante as primeiras décadas daquele século.
Para além de questões relativas a seu comportamento por vezes exuberante, sua elogiada retórica, sua boemia juvenil e seu amor por Jenny Von Westphalen, este primeiro volume da obra de Michel Heinrich dedica-se especialmente a uma profunda investigação sobre o debate filosófico que agitava as universidades de Berlim e de Bonn naquela época. Tanto Marx quanto seus amigos mais próximos foram campeados para os acalorados debates em torno da obra de Hegel, intrigados especialmente com a polêmica que emergia a partir do seu livro Filosofia da Religião.
É interessante notar que pelo menos até o começo de sua vida adulta, Marx parecia ter ainda pouco interesse para os temas sociais, políticos ou econômicos, dedicava-se fundamentalmente às reflexões filosóficas e alimentava o sonho de seguir a vida como um estudioso das artes e da literatura, arriscando-se inclusive como poeta.
Por tudo isso, este primeiro volume da biografia preparada por Michael Heinrich – os volumes restantes estão prometidos até 2022 – é sem dúvida uma leitura fundamental para quem pretende entender a visão de mundo de Karl Marx durante os anos de construção de sua identidade e de sua formação intelectual. Entretanto, como se trata justamente de um período da vida de Marx especialmente carente de referências materiais a respeito de sua vida e do seu pensamento, o biógrafo parece as vezes se exceder nos detalhes periféricos, tornando a leitura do livro um pouco maçante e escapando para minucias que talvez digam pouco sobre aquele Marx da juventude. É de se esperar que nos dois próximos volumes, assentados sobre montanhas de documentos, anotações, cartas e publicações do próprio Marx, sejam revelados nuances e insights muito mais saborosos, afinal, Michael Heinrich é provavelmente hoje a pessoa que dispõe das melhores condições para refletir sobre este imenso inventário reunido pelo projeto MEGA.
Karl Marx e o nascimento da sociedade moderna
Volume 1: 1818-1841
De Michael Heinrich, tradução Claudio Cardinali
2018, Editora Boitempo