A disputa de valores e o ataque às Universidades
“Muera la inteligencia!
Viva la muerte!”
Os ataques às universidades nos últimos dias, em meio à tempestade do segundo turno das eleições presidenciais e nos dias que se seguiram, a pretensão de intervir nas provas do Exame Nacional do Ensino Médio, sinalizam o que podemos esperar do advento do consulado que se inicia a partir de 1º de janeiro de 2019. O que estamos assistindo agora é um trailer do que pode vir a ser um longa-metragem cujo final tragicômico já conhecemos.
A morte do Reitor Luiz Carlos Cancellier, da Universidade Federal de Santa Catarina, em 2 de outubro de 2017, esculpiu de forma simbólica a porta de entrada no Estado policial. Contou com a direta participação de dois aparatos institucionais: o Judiciário e a Polícia Federal. Os meios de comunicação, com as exceções de sempre, trataram o episódio como se tudo estivesse dentro da normalidade. Como se a violação da autonomia da universidade, a prisão arbitrária e a humilhação a que foi submetido o reitor estivesse de acordo com o figurino republicano e não fosse a aberração que é. Como se a carta que Luiz Carlos Cancellier redigiu expondo as razões do suicídio fosse algo fortuito.
A delegada da Polícia Federal que conduziu a operação foi promovida poucos meses depois. A sociedade assistiu a tudo com indiferença. Mas, é razoável dizer que essa morte permanecerá como um caráter impresso a fogo para definir os tempos que correm e, tememos, os tempos que se aproximam.
Para melhor compreender a virulência e o sentido dos ataques às universidades é preciso situarmos brevemente o contexto em que eles ocorrem. Há trinta anos o país se debate numa batalha em torno do que deve prevalecer dos valores, contraditórios, abrigados na chamada constituição cidadã. Esse prolongado conflito polarizado por duas forças políticas majoritárias que agregam em torno de si forças de menor peso e disputam o centro do espectro partidário num movimento pendular ora em favor da agenda neoliberal, ora buscando afirmar um projeto democrático-popular. Mas sempre dentro dessa moldura.
O não reconhecimento da segunda vitória de Dilma Rousseff pelos derrotados, em 2014, e, ao mesmo tempo, o peso que obtiveram na composição das cadeiras da Câmara dos Deputados, resultaram na assunção de Eduardo Cunha à Presidência da Casa, graças à pesada intervenção empresarial para subornar parlamentares e garantir o simulacro do impeachment, como agora, dois anos depois, revelam as investigações que resultaram na prisão do dono da JBS.
Dissolveu-se ali o precário equilíbrio que garantia a governabilidade nos marcos do presidencialismo de coalizão. Com a prestimosa contribuição do Judiciário, o barco navegou rumo à deriva, àquela altura, inevitável. O golpe de 2016 selou a interrupção do movimento pendular. A agenda neoliberal derrotada em quatro pleitos sucessivos, passaria a ser executada, contra a vontade popular, por um governo tampão e ilegítimo.
Esse é o contexto. A imposição da agenda neoliberal num país periférico como o Brasil não pode contemplar aspirações de um projeto de desenvolvimento nacional autônomo. Abre-se aí um conflito com os centros de ensino e pesquisa. As universidades brasileiras, como centros autônomos de produção e reprodução do conhecimento estão ameaçadas por uma ofensiva mercantil e obscurantista. Foram desafiadas, a partir de 28 de outubro de 2018, a abrir-se para o diálogo com a sociedade como uma estratégia para sua própria sobrevivência.
É necessário apresentar com clareza, para uma sociedade embrutecida pela desinformação e pela manipulação midiática, o significado de uma universidade pública, democrática, autônoma e comprometida com as aspirações da cidadania. E fazê-la compreender que não se trata de uma disputa ociosa entre teóricos e professores sobre o papel que deve cumprir a ciência na evolução da sociedade; sobre este ou aquele projeto de desenvolvimento nacional.
A rigor, o neofascismo no Brasil do século 19 não apresenta nenhum projeto de desenvolvimento: é a sua negação. Não anuncia nenhuma medida em defesa da soberania nacional: renuncia a ela. Carrega, em si mesmo, um projeto destrutivo. Faz a apologia da barbárie, portanto, castra ou exclui a universidade.
Trata-se, neste momento, de diagnosticar e combater a estratégia em curso para sufocar o funcionamento autônomo das universidades pela mobilização de segmentos neofascistas organizados dentro das próprias instituições, no corpo docente e no corpo discente; pelo estímulo à delação; pelo corte dos recursos materiais e financeiros; por essa excrescência chamada Escola sem Partido; pela pressão judicial ou, à falta de melhor argumento, pela força bruta da polícia.
Equacionar e estabelecer as alianças sociais e políticas adequadas para construir uma perspectiva de resistência cultural e científica, colada às necessidades concretas da população, é o desafio. Acumular forças para fazer frente à ofensiva do neofascismo sobre as instituições acadêmicas do país e combater sua dupla face: a mercantil que concebe – num dos países mais desiguais do mundo – a universidade para poucos; e a obscurantista que busca submeter pela insegurança e pelo medo institucionalizado, a hegemonia de concepções anacrônicas, ultrapassadas pelo avanço das ciências ou a restauração de dogmas de fé investidos da condição de verdades irremovíveis. Se depender dos promotores da “Escola sem Partido”, estaremos a caminho de abolir Galileu da história da ciência.
A frase que utilizo como epígrafe para esse comentário, é atribuída a Millan Astray oficial franquista, fundador da Legião Estrangeira Espanhola, proferida numa cerimônia dentro da Universidade de Salamanca, uma das mais antigas do mundo, diante do Reitor, Dom Miguel de Unamuno, em 1936. A resposta que teria recebido de Unamuno gerou uma controvérsia que não nos interessa aqui. Astray se orgulhava de ser o soldado com o maior número de cicatrizes, na Europa… Um mutilado conhecido por sua selvageria. Mas o franquismo percebeu cedo que para se consolidar deveria dotar-se dos mecanismos adequados para controlar a produção do pensamento conferindo a ela por meio das universidades uma sólida base conservadora, enquanto reprimia brutalmente as bases dos movimentos operários e os partidos políticos à esquerda. Durou quarenta anos.
Calar as universidades, anular a capacidade de produção do pensamento crítico e da inovação, submetê-las à condição de centros de produção e reprodução de mão-de-obra desprovidas da pretensão de contribuir para qualquer projeto de futuro independente, é parte decisiva do processo de conversão do Brasil em um arquipélago de enclaves neocoloniais explorados pelas grandes corporações: petroleiras, mineradoras, monopólios de mercantilização da água e das florestas, etc.
Na contracorrente, o nosso desafio é fazer das universidades espaços dinâmicos e fecundos de resistência ao obscurantismo, capazes de mobilizar a força vital da sociedade – a juventude – em torno da construção de novas utopias. A defesa das universidades públicas torna-se um imperativo da reconstrução democrática do Brasil.
Pedro Tierra (Hamilton Pereira) é poeta. Ex-presidente da Fundação Perseu Abramo.