O jornal francês Libération publicou na primeira semana de novembro dois artigos de pesquisadores sobre a mudança de rumo dos países latino-americanos e, em especial do Brasil. Em Bolsonaro ou o resgate do silêncio, Serge Gruzinski, historiador e diretor da École de Hautes Études en Sciences Sociales (Escola de altos estudos em Ciências Sociais), inicia apresentando uma reflexão sobre a História, “as eleições do Brasil confrontam o historiador quanto aos efeitos do tempo que passa sobre a memória das nações”. Gruzinski defende a História como um conhecimento fundamental para que o caminho futuro seja escolhido corretamente e que erros do passado não voltem a ocorrer. Entretanto, o passado político não é valorizado no Brasil.

O historiador afirma que muitos dos eleitores de Jair Bolsonaro não fazem a menor ideia do que foram os vinte anos de ditadura militar ou o regime de Getúlio Vargas, que flertou abertamente com o fascismo europeu. Na perspectiva de Gruzinski, a lei de anistia aprovada em 1979 é em parte responsável por isso. Em função da legislação, não houve revisão crítica do período militar. Tardiamente, durante o governo Dilma Rousseff, houve a Comissão Nacional da Verdade, mas que não teria se aprofundado muito.

Gruzinski argumenta que o distanciamento do tempo e a falta de conhecimento das populações favoreceram a idealização do período autoritário diante das dificuldades do presente que os grandes órgãos da mídia acordaram em amplificar. “A desinformação fez o resto. Nas escolas, a ausência de uma educação crítica sobre as fases autoritárias atravessadas pelo Brasil ajudou na amnésia das populações”. O pesquisador alerta que a Europa precisa tomar cuidado com esse tipo de situação já que a extrema-direita tem dado sinais de força em diversos países, novamente. Ao fim, Serge Gruzinski conclui apontando para um caminho, “a informação não deve somente alimentar a comparação e a análise crítica. Ela pode também ensinar a se proteger para melhor resistir”.

Outro historiador, na Universidade Paris III – Sorbonne Nouvelle, também diretor do Instituto de Altos Estudos da América Latina, Olivier Campagnon, assina o artigo A virada muito à direita da América Latina. A reinvenção das esquerdas é algo fundamental na perspectiva do pesquisador. Campagnon elenca quais seriam os motivos que têm levado a direita ao poder nos países latino-americanos: o desgaste de poder impressionante das esquerdas que se distanciaram dos movimentos sociais que as levaram aos governos e que estão implicadas em inumeráveis casos de corrupção; crises econômicas graças à brutal queda dos preços de matérias-primas que tinham garantido um crescimento excepcional entre o início dos anos 2000 e a primeira metade de 2010, restringindo assim a capacidade redistributiva do Executivo; incapacidade de responder de maneira sustentável e eficaz aos desafios da redução da desigualdade, da precariedade e da insegurança; a grande volatilidade dos eleitorados latino-americanos que se distanciam de governos ao passo em que estes perdem a capacidade de honrar compromissos.

Campagnon ainda avalia que a radicalização das direitas está conectada ao aumento da presença de igrejas evangélicas, que veem nos programas econômicos neoliberais um eco profano da teologia da prosperidade da qual elas são portadoras, além da agenda conservadora que combate pautas progressistas como a descriminalização do aborto e políticas menos rígidas sobre o uso de drogas.

Os artigos dão sinais de que a esquerda latino-americana e os movimentos de resistência contra a redução de direitos podem e devem buscar no passado as respostas sobre quais os caminhos que podem ser tomados a partir de agora. O intercâmbio com o conhecimento europeu parece ser importante para a construção da possibilidade da volta do progressismo ao poder.

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