O Reconexão Periferias da Fundação Perseu Abramo inicia uma série de entrevistas mensais que articularão temas de interesse da sociedade com os estudos, análises e ações organizadas pela equipe do projeto. Todo mês, teremos um entrevistado ou entrevistada apresentando reflexões e posições sobre o cenário nacional e internacional.

A entrevistada do mês é Morgana Eneile, licenciada em Artes Visuais e presidenta da Associação de Doulas do Rio de Janeiro – AdoulasRJ. Com 38 anos, Eneile é professora de Artes das redes de ensino fundamental de Duque de Caxias e Niterói, nascida e criada em Padre Miguel, zona Oeste do Rio de Janeiro, é ativista dos direitos das mulheres pelo parto digno e respeitoso e mãe de Dave e Teodoro. Também foi gestora pública nas áreas de cultura e de juventude, tendo trabalhado na Funarte, Ministério da Cultura, SEASDH e na Comissão de Cultura da Alerj, além de atuar nas áreas de políticas públicas de cultura, educação e juventude com experiência em desenvolvimento e acompanhamento de programas e políticas públicas.

O tema focal da entrevista, no entanto, é de grande preocupação para a Cultura e Memória nacionais. No primeiro domingo de setembro (2), o Brasil assistiu a destruição de sua mais antiga instituição científica, o Museu Nacional. Com um dos maiores acervos de história natural e antropologia do país, o museu contava com cerca de vinte milhões de itens, além de ter sido a residência oficial da família imperial. Administrado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), o museu acabara de completar duzentos anos, tendo sido fundado em 6 de agosto de 1818, por Dom João 6o. Entre os principais itens perdidos estavam: o trono de Daomé, do rei africano Adandozan (1718-1818); a coleção de arqueologia clássica, considerada a maior do gênero na América Latina; o esqueleto Maxakalisaurus topai, o primeiro dinossauro de grande porte a ser montado no Brasil; artefatos das populações ameríndias e afro-brasileiras, contendo objetos raros; e, talvez, das perdas que mais impactaram, Luzia, o fóssil humano mais antigo encontrado no Brasil e que abriu todo um novo leque de estudos e produção científica sobre as Américas. E como esta perda impacta na relação com as periferias? Da importância enorme para a memória, como esta perda impactará na memória periférica e marginal da sociedade brasileira? Tanto por sua relação profissional, quanto por sua relação simbólica com a instituição, Morgana Eneile falou um pouco sobre estas questões conosco. Confira.

Reconexão Periferias (RP/FPA): Você poderia falar um pouco sobre o que representa a perda do Museu Nacional para a sociedade brasileira?
Morgana Eneile (M): Nada que se possa responder dará conta efetivamente desta pergunta. São tantos os caminhos da memória para a coletividade, que uma fala é capaz de dar apenas uma pequena dimensão. Se pensarmos que o conceito de patrimônio histórico-artístico-cultural diz respeito ao interesse coletivo, não há conta que consiga determinar a perda em palavras. No entanto, ouso dizer, que o Museu Nacional é um dos mais relevantes em acervo e produção de conhecimento, não só para o nosso país. A perda do seu acervo é a formação de um vácuo de representatividade para as futuras gerações no contato com o objeto museológico em si, uma vez que mesmo os registros que retomados digitalmente serão apenas uma versão do que foi.

(RP/FPA): E para você, o que representa? Qual era a sua relação com o Museu Nacional?
(M): Ainda soa como algo inverossímil que tal perda tenha ocorrido. Por mais que a realidade esteja imposta. O Museu Nacional foi a minha primeira visão concreta da palavra e do espaço museu. Parte da configuração da memória afetiva, familiar e de local de constituição de saberes. Perder o lugar preferido do meu filho de cinco anos, é algo dolorido por demais.

(RP/FPA): O Museu Nacional ficava em uma região não central no Rio de Janeiro. Como você vê o impacto desta perda nas comunidades próximas?
(M): O Museu Nacional fica localizado num dos principais espaços de lazer de diversas famílias periféricas. Para quem não é carioca, fica mais fácil de entender se pensar que ele fica num parque público de área verde onde também se localiza o zoológico, diante de uma estação da linha férrea onde se alcança facilmente de diversas cidades da Baixada Fluminense e da Zona Oeste da cidade. Mesmo que uma pessoa não tenha adentrado seu espaço museológico, ele se configurava como presença e memória. A comoção da população em relação ao museu diz muito sobre o que ele tem de presença na vida das pessoas e, em especial, na formação da ideia de museu e do encantamento que os registros do passado podem ter.

(RP/FPA): Como você avalia outros equipamentos de cultura e patrimônios históricos no país? Em que situação estamos?
(M): A fala do senso comum recorrente em torno do patrimônio histórico é do seu alto custo de conservação. Existem, hoje, no estado do Rio de Janeiro, centenas de equipamentos culturais e do patrimônio com diversos problemas de conservação. Muitos já dilapidados e de difícil restauração. E qualquer breve e superficial pesquisa demonstra a ocorrência de casos similares em outros estados. Por mais que fatalidades reapresentem este tema para autoridades, gestores e para a sociedade, a correlação entre o investimento na cultura e no patrimônio e as demais áreas de atenção por parte do estado é sempre de baixa priorização, uma vez que outras políticas sociais se apresentam como urgentes para a vida cotidiana das pessoas, na conhecida tríade saúde – educação – trabalho, com o fator segurança correndo por fora. Não há previsão de alteração concreta do quadro sem o estabelecimento de prioridades para a salvaguarda do patrimônio e, muito menos, sem a configuração de um modelo de desenvolvimento complexo, que inclua a cultura na lógica de formação da sua base, agregada ao econômico-social.

(RP/FPA): Como fazer com que a sociedade como um todo valorize mais a memória e a história?
(M): Seria uma fácil resposta propor mais espaço para a educação patrimonial. Um tema que é alvo de estudos, simpósios e publicações diversas. Mas, melhor pergunta seria: como a sociedade deveria desejar acessar sua memória? Objetivamente não tenho essa resposta, mas há alguns palpites. O desejo pela memória é algo inerente ao ser humano. Registramos nossas marcas o tempo todo, buscamos o sentido da perenidade na nossa prática, mas os links entre a marca de hoje e a presença do passadonessa marca é de difícil correlação e passa por processos de consciência histórica. Uns vão culpar a educação. E é fato que o modelo tradicional de reprodução dificulta. Outros, vão culpar os gostos, colocando na família como causa geradora dessa ‘desimportância’. E nada disso levará em consideração o fator capital cultural que pode ser adquirido de forma variada, ainda que tenha na escola um lugar tangível de possibilidade. Prefiro acreditar na construção destas conexões, que precisam de fatores múltiplos como acesso aos mecanismos de fruição cultural, ocupação dos lugares diversos como espaços de memória coletiva – significando não só os já reconhecidos e registrados, e apropriação dos espaços do patrimônio por atividades vivenciadas de formas diversas. Por que todo ‘prédio velho’ tende a virar museu? Memória coletiva é fator cotidiano e não pertence aos museus somente. Estes são espaços especiais de reconhecer as coleções e bens. Mas se pensarmos tudo como “musealizável”, a distância entre o que é vida hoje e a existência passada poderiam diminuir.

(RP/FPA): Fale um pouco pra nós sobre suas percepções em relação a políticas culturais e as periferias.
(M): Cresci em Padre Miguel, Zona Oeste carioca, bairro permeado de conjuntos habitacionais populares, favelas, duas escolas de samba e muitos recantos. E em especial, uma diversidade cultural fantástica que se expressa todos os finais de semana no Ponto Chic. Para mim, aquilo é a Cultura no centro. Quando me encontrei com a militância cultural, a universidade e a “intelectualidade retumbante” é que me dei conta de que era periférica. Tudo isso para quê? A produção cultural da humanidade está além das políticas culturais. Ela se retroalimenta, se renova, se recompõe, cotidianamente. Vários prefeitos já tentaram acabar com a balbúrdia de domingo do Ponto Chic, e ele sempre se reinventa. Do pagode da feira, passando pelo baile charme, pela esquina do funk, são milhares de pessoas se reinventando na rua. O X da desigualdade é que nós, os periféricos em sua maioria, não pensávamos até ontem no tempo, que os meios de produção na cultura também deveriam de ser divididos. Durante algum tempo, a grande discussão era por equipamentos culturais – e é esta uma demanda objetiva até hoje, mas alcançada a compreensão de que somos todos produtores-fruidores-usuários, reconhecer nosso território e espaço como lócus de importância tem sido o grande mote. E é justo por aí que as políticas culturais têm se referenciado. Seja através do que foi a iniciativa dos Pontos de Cultura, seja o que se chama em alguns lugares como Ações Locais ou o próprio VAI em SP. Onde a desigualdade deve ser enfrentada agora é na distribuição de recursos. Qualquer comparação entre um edital que envolva questões periféricas e uma linguagem dita clássica verá a total desproporção dos recursos investidos. Vencer o conceito de resistência para apropriar-se da existência comum da cidade como local de cultura plena.

 

 

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