O fracasso do golpe no país surreal
“A Revolução que acalentamos na juventude, faltou.
A vida, não. A vida não falta.
E não há nada mais revolucionário que a vida…”
Versos do Poema “Os Filhos da Paixão (1994)
Será vão o esforço intelectual, mesmo das cabeças mais brilhantes, empenhadas em utilizar as categorias cartesianas para decifrar o Brasil. Aqui nos trópicos, nem mesmo o surrealismo – como advertia Alejo Carpentier na Introdução Manifesto ao “El reino de este mundo” – seria capaz de dar conta dos paradoxos da esfinge…
Contados dois anos, desde a deposição da presidenta eleita, Dilma Rousseff, de desmoralizar e isolar o Partido dos Trabalhadores, numa vitória arrasadora em toda linha, nas ruas e nas instituições, as forças sociais e políticas que desferiram o golpe de Estado, em 2016, chegam às vésperas das primeiras eleições presidenciais pós-golpe numa situação singular: desabou a “Ponte para o futuro” prometida no momento do triunfo da conspiração. O país foi conduzido, em marcha batida – para que não se desse às forças populares fôlego suficiente para respirar e reagir ao assalto aos direitos conquistados no período anterior – à entrega dos recursos naturais, à liquidação das políticas de inclusão social, à destruição do projeto de crescimento soberano e com distribuição de renda.
O golpe fracassou. Para impor ao país os objetivos da agenda neoliberal, os golpistas chegam às eleições de 2018 que eram sonhadas como o selo que haveria de conferir a sonhada legitimidade, carregando nos ombros alguns fardos pesados: a) um fracasso econômico insofismável. O país foi conduzido à recessão e a sucessivas quedas nas atividades industriais, comerciais e de serviços. Só os bancos, como não podia deixar de ser, seguem imunes às crises; b) um fracasso social, traduzido nas altas taxas de desemprego, na precarização das relações de trabalho, na liquidação das políticas de inclusão como o “Minha Casa Minha Vida” e o “Bolsa Família” que devolvem o país ao mapa da fome; e c) um fracasso político que levou à gigantesca rejeição popular ao governo, ao ponto de não contar com um único candidato na corrida presidencial que se disponha a defendê-lo, mesmo os mais comprometidos com ele, como Alckmin e Meirelles.
O personagem que encarna o golpe – o usurpador Michel Temer – se converteu num fantasma abominável, a quem ninguém mais se dirige, senão para execrá-lo. De quem todos fogem, mesmo seus sócios mais íntimos, porque sua imagem diante da população contamina a credibilidade de qualquer pretensão.
Hoje, os dois líderes que representam as forças políticas de maior relevância estão formalmente fora da disputa. Um na prisão. O outro no hospital. Ambos representados nesse momento por seus vices. O primeiro por um advogado, economista. O outro, por um general. Peculiaridades da esfinge tropical… 2018 revela ao Brasil que ainda deseja entender o que se passa, que o Brasil não resolveu o impasse entre a cultura autoritária, racista, misógina e politicamente colonizada e a cultura democrática, inclusiva e defensora da soberania. Em outros termos: o impasse entre a Casa Grande e a Senzala. Entre seguir cumprindo a condenação de ser colônia ou manter de pé o projeto de se tornar um dia uma nação.
O cenário destas eleições presidenciais de 2018 nos remete a uma tela de Debret: um dos contendores se encontra atado ao pelourinho, os demais, com os braços livres empunham o chicote e fustigam. Assim funciona a democracia nesses trópicos… As elites brasileiras – leia-se, o capital financeiro, os oligopólios dos meios de comunicação, os donos do agronegócio – ainda não entenderam, por subestimá-lo sistematicamente, que a cada vez que impõem uma derrota a Lula, pela força do aparato do Estado sob seu controle, como ocorre agora ao negar-lhe o direito à candidatura, ele dá a volta por cima e se apresenta mais forte na batalha seguinte. Há quem formule a crítica de que Lula não deveria “desistir da candidatura”. Deveria ir até o fim. A resposta de Lula é, desde a prisão onde se encontra, lançar a candidatura de Fernando Haddad e demonstrar a capacidade das esquerdas para se renovar e imprimir um novo vigor na disputa.
A prisão arbitrária imposta pelo aparato judicial brasileiro permitiu a Lula recuperar sua estatura única como líder popular do país. E recuperou a imagem do Partido dos Trabalhadores para as lutas sociais e eleitorais do próximo período. O PT alcança, hoje, a preferência partidária de 25% da população brasileira. Os partidos comprometidos com o golpe, todos, não alcançam 5%.
De dentro do hospital, o capitão envia sua mensagem – a única que é capaz de enviar – de apologia da violência fascista como forma de resolver os conflitos da sociedade e atrair para si os votos da direita atônita que perdeu para ele a “embocadura do discurso”. Trata de assegurar a hegemonia política que conquistou sobre a massa dos setores sociais que foram para as ruas respaldar os condutores do golpe de 2016.
As declarações do ex-presidente do PSDB, senador Tasso Jereissati, na última semana explicitando uma autocrítica sobre os descaminhos do partido que, segundo ele, se afastou do respeito à democracia, ao não reconhecer a derrota de 2014; ao embarcar na aventura do golpe em 2016; e por fim, ao integrar-se ao governo Temer, consumou uma trajetória de equívocos. Palavras que soaram como um dobre de finados sobre a campanha dos tucanos.
Atestam, as declarações do senador, que o discurso da direita foi capturado pela extrema-direita encarnada pelo capitão. A direita bem pensante rendeu-se a um discurso tosco e simplificador. O bolsonarismo se apresenta como uma espécie de integralismo da idade da pedra, nutrido pela maré conservadora mundial contemporânea. Aqui mora precisamente o perigo: o capitão simbolicamente vertebrou o discurso fascista com uma parcela significativa da base popular. Eis aí o rosto da fera que espreita a democracia brasileira: um fascismo popular numa sociedade conflagrada.
A peculiar democracia brasileira, depois de relativizar a vigência da Constituição de 1988, vem nos oferecendo um cardápio variado de cenas exemplares. A mais vistosa é o “pelourinho eletrônico” montado na praça maior de Pindorama: o Jornal Nacional da Rede Globo de Televisão. Por ela desfilam todos os candidatos que a emissora convoca. Ali são submetidos ao açoite público, com o lustroso casal de âncoras executando o suplício, como executavam os antigos feitores.
Elevado a técnica jornalística, o interrogatório reproduz a lógica do que se punha em prática nas salas acústicas da rua Tutoia ou da Barão de Mesquita: a tese chega pronta. O interrogado tem todo o direito de confirmar ou desmentir. Desde que se atenha ao texto previamente preparado…
No “pelourinho eletrônico” os postulantes ao mais importante cargo da República são supliciados ante os olhos incrédulos ou indignados dos expectadores por um poder que se atribui uma tutela sobre a sociedade, que a sociedade não lhe delegou. Inverte-se assim, nessa democracia tropical, a ordem dos fatores. Uma empresa que atua como concessão do poder público, de acordo com a Constituição, assume o papel de concedente: opera sem qualquer inibição para impor o nome que mais lhe convém. Pretende, assim, assegurar as condições para seguir governando o governo…
A movimentação dos números apresentados pelos levantamentos de opinião desses últimos dias aponta para uma decisão dramática – mais uma vez – entre o petismo representado por Fernando Haddad com forte impulso ascendente e o anti-petismo, agora sob a liderança fascista do ex-capitão, já que a “direita civil” perdeu substância como porta-voz do projeto neoliberal para o país.
Para as esquerdas está posto o desafio de unificar-se e buscar ampliar sua capacidade de atrair os setores populares dispostos a votar na candidatura de Fernando Haddad ancorada e apoiada por Lula. Para a “direita civil” resta a escolha de respaldar abertamente o fascismo ou retomar o caminho de defesa da democracia do qual se afastou ao questionar os resultados das urnas de 2014.