A Constituição Federal de 1988 (CF-88) completa seus trinta anos sob intenso ataque. O pacto constitucional de 1988 foi quebrado, e ainda que instável e inacabada, a democracia brasileira se fiava no respeito das instituições políticas às decisões das urnas. Entretanto, desde o questionamento dos resultados eleitorais em 2014 até a consumação da deposição presidencial em 2016, esgarçaram-se os laços que sustentavam o ciclo político da Nova República.

Enquanto a judicialização da política ameaça o Estado democrático de direito, a desestatização de setores estratégicos afronta o arranjo econômico-institucional que viabilizou nosso desenvolvimento, e o desmonte de direitos sociais e trabalhistas atenta contra as bases do Estado de bem-estar que propiciou mínimas condições de proteção social no país.

Parte das contradições que trouxeram o país ao atual estado de coisas talvez já estivesse presente sob a forma de problemas latentes e tácitos desde o próprio processo de construção da CF-88. Ao menos é essa a impressão com que se fica após a leitura do livro “1988: segredos da Constituinte”, do jornalista Luiz Maklouf Carvalho.

O livro compila 44 entrevistas, com o presidente da ocasião, o general de plantão, ministros da fazenda, presidentes e vice-presidentes de comissões, relatores, líderes e vice-líderes, além de juristas, funcionários, representantes da sociedade civil organizada e diversos parlamentares constituintes, com o objetivo de revelar, como anuncia o subtítulo, os bastidores dos “vinte meses que agitaram e mudaram o Brasil”.

Se, por um lado, o livro peca por não trazer uma visão integral de todas as partes envolvidas naquele processo, pois trás as memórias fundamentalmente de representantes do então MDB e da dissidência que geraria o PSDB, por outro lado, ele tem o mérito de iluminar as querelas de gabinetes e corredores que marcaram aquele período de crise de hegemonia, provocada pela falta de legitimidade do presidente, pelo desajuste inflacionário da economia e pela condução tensa de uma transição negociada nos marcos da conciliação social e do Estado de compromisso. Vejamos.

O processo de construção de um ambiente político e social favorável a uma Nova Constituinte foi um processo de longa duração, seu primeiro sinal surgiu ainda em 1971, quando o MDB publicizou seu primeiro documento político em favor de uma Constituinte, e se encerrou em 5 de outubro de 1988, com a promulgação da Carta Cidadã. O ápice desse processo ocorreu entre setembro de 1986, com a eleição dos parlamentares que iriam compor a Assembleia Constituinte, e outubro de 1988, quando se encerrou a missão constitucional.

Nesse período, dos 559 parlamentares, 487 são deputados e 72 são senadores. A maior bancada era a do PMDB, com 298 congressistas (53,3% do total); em segundo lugar o PFL abrigava 133 parlamentares; o PDS 38, seguido do PDT, com 26; PTB, com 19; PT, com 16; PL, com 7; PDC, com 6; PSB, com 2; PCB, com 7; e PCdoB, também com 7.

Mais ainda, do total, 274 eram estreantes, apenas 26 eram mulheres e 217 tinham passagem pela Arena ou pelo PDS durante a ditadura militar. A idade média era de cerca de 48 anos e a ampla maioria dos parlamentares eram bacharéis em direito (243) e medicina (49). Além disso, segundo levantamento feito na ocasião, do ponto de vista ideológico, 32% se declaravam de centro, 24% de centro-direita, 23% de centro-esquerda, 12% de direita e 9% de esquerda, todos trabalhando distribuídos entre oito comissões e 24 subcomissões temáticas, além dos trabalhos de sistematização e no plenário.

A ampla maioria dos depoimentos dá notícias do protagonismo e das disputas envolvendo o então enfraquecido presidente da República José Sarney, o fortalecido presidente, simultaneamente, do Congresso, da Constituinte e do MDB, Ulysses Guimarães, e o insatisfeito líder do MDB Mário Covas, ao que tudo indica os três maiores expoentes daquele embate político.

O primeiro imbróglio enfrentado naquele período se deu em torno da divergência sobre a instauração de uma Assembleia Nacional Constituinte exclusiva ou de um Congresso Constituinte,. O interessante debate sobre se o Congresso seria um poder constituinte ou um poder constituído teve vida curta, e a segunda opção logo foi encaminhada por Ulysses Guimarães, em acordo com Sarney e Covas, reafirmando a presença robusta do MDB no controle do processo. Com tal procedimento o “triunvirato” circunscrevia o debate constitucional no interior de seus espaços de governabilidade e controle. Estabelecido esse consenso mínimo, estavam abertas as portas para as disputas internas entre os três principais constituintes.

A definição do duplo mandato aos parlamentares, congressual e constituinte, criou uma sobreposição indelével entre os interesses particulares de manutenção dos mandatos e os interesses coletivos de construção de novos marcos jurídico-políticos, fato que pode ser observado em outras duas disputas.
A Constituição deveria tomar como ponto de partida o texto-base previamente produzido na Comissão de Notáveis instalada por Sarney no Executivo ou deveria ser iniciada como tábula em branco a partir dos trabalhos conduzidos por Ulysses no Legislativo? A primeira opção trazia o benefício de tornar o trabalho mais exequível, mas também continha o risco de tornar o novo texto muito próximo à Carta de 1946, ao passo que a segunda opção tornava a tarefa de redação mais incerta, mas também mais aberta aos ares do tempo. O peso da mão forte de Ulysses mais uma vez impôs que a redação se iniciasse não nas hostes de Sarney, mas em suas próprias.

Com o embate circunscrito agora no Legislativo, a escolha do relator do regimento interno que conduziria a Constituinte passou a ser uma questão central, Ulysses havia indicado para tal tarefa justamente Fernando Henrique Cardoso, acirrando rusgas paulistas contra Mário Covas, que, por seu turno, tomou para si, como líder do maior partido na Câmara, a tarefa de escolher os presidentes e relatores das comissões que deveriam redigir a Constituição.

Se as disputas por poder e espaço no interior da Constituinte afastavam Ulysses e Covas, é certo que a convicção em limitar o raio de atuação de Sarney os aproximava. Foi no bojo desse consenso que o MDB paulista fechou posição em torno de limitar o mandato do presidente maranhense em quatro anos, e não nos seis anos previstos até então, e em torno da defesa do parlamentarismo, de modo que o debate sobre regime político e sistema de governo esteve marcado menos por preocupações acerca do funcionamento dos três poderes no futuro e mais por problemas relacionados à manutenção de determinadas autarquias de poder já existentes no presente.

O centralismo paulista se fez sentir, de um lado FHC propôs um regimento interno que assegurava poderes ampliados para a comissão de redação e sistematização, de outro lado Covas garantiu uma composição majoritariamente de centro-esquerda entre os amanuenses das comissões. Engana-se, no entanto, quem deriva dessa leitura a existência de uma aliança estratégica entre FHC e Covas, tratava-se aqui de uma parceria meramente circunstancial.

A aproximação entre os dois, ao que tudo indica, sempre foi marcada por desconfianças mútuas, o que se evidenciou no momento seguinte, quando Covas não apoiou FHC como presidente da comissão de sistematização final e optou for empoderar a atuação de Nelson Jobim, reconhecido como um dos grandes artífices da organização da estrutura final do texto da CF-88.

A responsabilidade pela relatoria da comissão de sistematização ficou a cargo de Bernardo Cabral (PMDB-AM) em uma costura que buscava, a um só tempo, atender às demandas das regiões Norte e Nordeste recebidas por Ulysses, controlar o poder de FHC e Covas e, de quebra, garantir uma nova correlação de forças mais favorável à Sarney.

Mas o desdobramento mais importante desse enlace se dará em outra arena, antes disso, enquanto Ulysses travava a disputa pela redução do mandato de Sarney, se viu desguarnecido de apoio de uma parte do Congresso, a bancada se mostrava insatisfeita com a concentração de poderes nas mãos dos paulistas, fato que se torna particularmente grave se levarmos em conta que esse grupo provocava uma assimetria no difícil equilíbrio de interesses federativos gerido por Ulysses e que esse grupo já iniciava um processo de afastamento que daria origem mais adiante ao tucanato.

A soma desses fatores criou um cenário favorável à recuperação da força de Sarney, o presidente passou a reagir a partir de um conjunto de iniciativas cujo efeito em cadeia impôs consequências que, em certo sentido, talvez estejam na origem da crise institucional do Brasil recente.

As tensões de bastidores entre os civis despertou a atenção dos militares que àquela altura ainda observavam e tutelavam uma parte do processo constituinte, a confusão da ocasião fortaleceu a posição do general Leônidas Pires Gonçalves, ministro do Exército, que defendia que o texto Constitucional deveria reafirmar o papel das Forças Armadas não apenas contra perigos externos, mas também contra ameaças internas, funcionando como uma espécie de garantidora em última instância da lei e da ordem, donde se seguiu a defesa da manutenção do policiamento estadual militarizado.

Além disso, o difícil empate entre as alas civis nessa conjuntura também marcou o debate sobre qual deveria ser o papel do Supremo Tribunal Federal e do Ministério Público, que emergiram quase que como poderes moderadores convocando para si a responsabilidade de arbitrar conflitos ente o Executivo e o Legislativo, donde se seguiu a defesa do MP como instituição autônoma.

Mas, além dos lobbies corporativos estatais acima descritos, o que importa destacar é o modo como o presidente Sarney também se valeu habilmente desse cenário de indeterminações. A fim de virar o jogo a seu favor é que o presidente iniciou as movimentações para atender as clientelas congressuais e privadas insatisfeitas com a redação do texto Constitucional, ao invés de negociar com as bancadas dos partidos. Sarney abriu a negociação com grupos políticos e econômicos por critérios de interesses federativos e setoriais, e assim se formou a base parlamentar oficialmente nomeada de “Centro Democrático”, ainda hoje conhecido popularmente como o bloco de viés direitista chamado de “Centrão”.
O coesionamento dessa base foi operacionalizado pelo então ministro das comunicações Antônio Carlos Magalhães, responsável pelo balcão de ofertas de concessões públicas de rádio e TV em troca de apoio político parlamentar, dando início à composição de oligopólios e propriedades cruzadas no setor de comunicações brasileiro. Nesse sentido, talvez não seja exagero afirmar, ainda que a posteriori, que as origens mais remotas dos poderes das instituições responsáveis pelo avanço da onda liberal-conservadora no país atualmente – o STF, o MP, as polícias, as forças armadas, a grande imprensa e o “centrão” – começaram a tomar forma a partir de questões mal resolvidas no interior da própria Constituinte.

A vitória de Sarney levou à manutenção do mandato presidencial de cinco anos em um texto constitucional todo ele preparado para acolher um sistema parlamentarista, daí a permanente confusão, ainda hoje, sobre a clara divisão entre os três poderes, esboroada pela presença de dispositivos como medidas provisórias que permitem ao Executivo legislar e emendas orçamentárias que possibilitam ao Legislativo executar, sem mencionar as confusões e ambiguidades em torno das cortes judiciais superiores e suas atribuições em tempos de crise institucional.

Nesse sentido, o livro de Luiz Maklouf Carvalho nos permite enxergar a contramarcha liberal-conservadora em meio à marcha nacional-desenvolvimentista que também se fez presente de forma inequívoca na Constituição, muito embora o livro omita ou secundarize essa outra face da história. Ainda assim a mensagem central deve ser retida: por traz do produto avançado havia um imenso processo truncado.

O curioso, fato notado pelos dois ministros da Fazenda do período, Bresser-Pereira e Maílson da Nóbrega, é que a Constituinte concluiu seu trabalho em meio a uma transformação profunda em âmbito internacional e nacional. O texto de 1988 dialoga com o cenário de Welfare State do Pós-Guerra em bases progressistas, social-democratas e desenvolvimentistas, mas já em 1989 a queda do Muro de Berlim e a eleição de Fernando Collor jogam um precoce banho de água fria no próprio cenário político que deu origem à Constituição. O resultado disso, apontam Delfim Netto, parlamentar constituinte, e Miguel Reale Jr., assessor da presidência da Constituinte, foi um texto constitucional híbrido, ambíguo e marcado pela inconstância permanente que lhe foi imposta pela dinâmica da conciliação e do compromisso.

A ampla maioria dos entrevistados, atualmente, se revela contrária ao fato de a Constituição ter arbitrado sobre muitos temas e em níveis diversos de detalhamento, muitas queixas existem sobre o modo como a definição constitucional de gastos públicos veio desacompanhada da equivalente delimitação constitucional de receitas públicas, boa parte dos congressistas de ontem parece esposar hoje o pensamento liberal conservador segundo o qual o povo não cabe no orçamento, e, portanto, na Constituição.

Ninguém, no entanto, ousa diminuir a importância daquele momento para o país, e mesmo os mais reativos hoje reconhecem a importância e a centralidade daquele pacto. Prova disso é que, pragmaticamente, entre 1988 e 2018, todos os presidentes da República foram congressistas constituintes, Itamar Franco, FHC, Lula e Temer; Collor e Dilma, que não participaram da Constituinte também não concluíram seus mandatos.

Além disso, programaticamente, nenhuma conquista de direitos e de cidadania no período recente foi consolidada sem contar com a colaboração da CF-88, ora enfatizando os capítulos dos direitos civis e políticos e das garantias individuais, ora defendendo os capítulos dos direitos sociais e econômicos e das garantias de políticas públicas, de alguma forma todos ainda enunciam algum tipo de defesa da Carta Cidadã, o que, infelizmente, nem sempre se reflete na prática.

De qualquer modo, é curioso o fato de que as defesas da CF-88 apresentadas no livro possam ser sintetizadas na fala do general Leônidas quando afirma que “a Constituição não saiu como a gente queria – mas foi a Constituição para o nosso povo e para a nossa época. Ela não presta, em termos, porque nós também não prestamos, em termos. Foi a Constituição possível”. E na fala do então constituinte Michel Temer quando reitera que “a Constituição tem princípios do liberalismo e do socialismo, e foi isso que ajudou a manter uma estabilidade institucional, como nós nunca tivemos. Como houve uma amálgama dessas duas democracias, a liberal e a social, se pode avançar para o que eu chamo de democracia da eficiência”.

Passados trinta anos, o pacto constitucional de 1988 parece chegar ao seu esgarçamento, provocado paradoxalmente pelas forças que emergiram da própria Constituição. A leitura dessas memórias passadas e reminiscências presentes dão testemunho dos nossos erros e, se lidas com atenção, podem nos ajudar a corrigir erros futuros na busca pelo refazimento de um novo poder constituinte no Brasil.

Resenha do livro: CARVALHO, Luiz Maklouf. 1988: segredos da constituinte – os vinte meses que agitaram e mudaram o Brasil. Rio de Janeiro, Editora Record, 2017.

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