A tecnologia das plataformas digitais leva os trabalhadores e trabalhadoras para o passado. Ou, mais precisamente, quer mantê-los lá, numa situação de escassos direitos e num regime de jornadas cada vez mais extensas e salários cada vez menores.

A diferença em relação ao passado se dá na forma, mais sutil e ao mesmo tempo mais abrangente. A uberização do trabalho – termo inspirado no aplicativo Uber – consegue inclusive colocar a multidão para trabalhar de graça. Conjugadas com a legalização de vínculos como o trabalho intermitente, as novas tecnologias consolidaram o trabalhador e a trabalhadora “just in time”, requeridos apenas quando há demanda, no entanto permanentementes prontos a atender o chamado.

Essa nova configuração do trabalho vai estendendo a todos os trabalhadores regimes precarizados. O desenvolvimento tecnológico, neste contexto, é apenas um desdobramento de processo que está sendo construído há décadas. “Toda a trabalhadora negra, moradora de periferia, sabe o que significa ser uma trabalhadora ‘just in time’”, comenta a socióloga Ludmila Abílio, destacando através deste exemplo o fato de que a tecnologia serve para unir as pontas do presente com as de um passado que persiste.

O tema foi debatido na tarde desta quinta-feira, dia 23, no auditório Antonio Candido da Fundação Perseu Abramo, durante o lançamento do dossiê “Informalidades: Realidade e Possibilidades”, iniciativa do projeto Reconexão Periferias.

“Nosso interesse é entender o que está ocorrendo no mundo do trabalho, especialmente nas periferias, evitando o viés de culpabilização dos trabalhadores pela condição em que se encontram”, explica a também socióloga Léa Marques, consultora do projeto Reconexão e organizadora do dossiê.

Periferia, aqui, não se restringe à ideia de espaço geográfico. “Periferia como território, mas também como as pessoas às margens do sistema capitalista”, segundo Daniel Teixeira, advogado, representante do Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades (CEERT) e um dos colaboradores do dossiê.

Léa explica também que os dossiês que o Reconexão tem produzido pretendem dar subsídios para novas ações políticas de enfrentamento e superação dos problemas diagnosticados.

Houve consenso entre os debatedores de que a consolidação de políticas públicas de regulação e proteção do trabalho são essenciais para a resistência e a possibilidade de novas formas de organização diante dos novos processos produtivos.

Nesse sentido, Artur Henrique, dirigente da Perseu Abramo, propôs análise sobre três cenários que podem ser imaginados a partir das eleições deste ano. Usou como suporte a análise textual de programas de governo de três candidaturas, no tema trabalho e renda O de Geraldo Alckmin, por propor diretrizes genéricas, enunciados sem detalhamento, combinado com o histórico do candidato, representaria a continuidade do projeto representado por Temer. O de Bolsonaro, bastante explícito em questões de direitos que dialogam com a realidade das periferias, representaria a piora do cenário de retrocessos. O programa de governo de Lula representa a oportunidade de “saída” da conjuntura atual por, entre outras razões, afirmar explicitamente a necessidade de revogação de medidas como reforma trabalhista e teto de gastos com políticas públicas.

Somos todos uber?

Apesar de fazer referência direta ao aplicativo de transporte, o termo uberização não se restringe a esse trabalho, explica Ludmilla, que além de consultora do projeto Reconexão Periferias, é pesquisadora do CESIT (Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho), da Unicamp. “Todos somos potenciais uberizados, se é que já não somos”, diz.

Basicamente, o que o uber faz é dispersar o trabalho, sem local fixo e sem rostos definidos. Mas, nem por isso, perde o rígido controle sobre a operação. Até o usuário, sem perceber, trabalha de graça para o aplicativo, ajudando na gestão e na fiscalização.

Se, como lembrou a pesquisadora, essa forma de vínculo empregatício multiplica a figura do “trabalhador sob encomenda” – ou “just in time” -, não atinge somente motoristas. Há plataformas que desafiam pessoas a encontrar soluções para problemas organizacionais ou produtivos, com a promessa de premiar, em dinheiro, a melhor proposta apresentada. “Como se fosse um game”, lembra Ludmilla.

Até mesmo cientistas se lançam a esse tipo de concurso. O trabalho deixa de ser reconhecido como trabalho, embora continue sendo, sem remuneração. Motoristas de uber também são instados pelo aplicativo a encarar desafios – metas, números, faturamento – e vão intensificando a exploração. Algo muito semelhante aos incautos usuários de redes sociais, que ao navegarem por elas ajudam, gratuitamente, a aumentar o faturamento na mesma medida em que alavancam a audiência.

A via eleitoral pode ser um instrumento de resistência ao aprofundamento dos retrocessos, mas não o único, concluíram os debatedores presentes ao encontro. O próprio projeto Reconexão Periferias tem buscado alternativas à informalidade do trabalho e ao processo de isolamento que as novas tecnologias intensificam.

A economia solidária, cooperativa, é uma das alternativas destacadas pelos debatedores. O Reconexão já atua nesse sentido, à medida em que identifica e apoia coletivos que produzem arte, cultura e serviços.

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