Zilah – Um ser ético
Aquela aluna de Ciências Sociais, a bela ruiva de cabelos flamejantes e olhar de miosótis, estonteava os corações masculinos da Faculdade de Filosofia com sua inteligência. Mas quem levou a palma foi Perseu Abramo, num enlace que durou 43 anos e só a morte desfez.
Dois elementos constitutivos da personalidade de Zilah pedem realce. Primeiro, a jovialidade, a inquebrantável alegria de viver – e olhe que passou por poucas e boas. Mas, conforme o romancista russo, “assim foi temperado o aço”. Segundo, sua cortesia impecável, as boas maneiras e a polidez nunca desmentidas, que se expressavam no tom de voz sempre contido, sempre educado. Tudo isso era algo que vinha do mais profundo de seu ser, mesmo que se sobrepusesse sua intransigência política, sua incapacidade de aceitar algo que fosse de segunda categoria, ou o falso pelo verdadeiro. Era um ser ético. Aquela modéstia, aquele cuidado em não aparecer, evidenciavam como pairava acima das vaidades deste mundo, assim como se vestia com a maior discrição. A simplicidade era a de quem está muito seguro de si e eliminou (melhor, limou) todo o supérfluo de sua pessoa e de sua vida.
O preço que pagou foi alto – mas não foi preço, foi escolha consciente. Nunca teve bens materiais e a primeira casa que comprou na vida, aquela casinha amarela na Lapa (bairro onde sempre morou), foi depois dos 70 anos. E deu uma festa para comemorar. Até os 70, nunca possuiu uma casa – nem qualquer outra coisa.
Mas também, dinheiro não era um valor para ela. Culta e refinada, gostava de poesia, de leitura, de samba, de jazz e do Corinthians. Seu senso de humor se mostrava no talento para desconstruir o hipócrita, o pomposo, o reacionário. Gostava de conversar, gostava de rir. Gostava de receber, sua hospitalidade era de acolhida calorosa, na base do café com bolo.
Festa em sua casa – casa de gente festeira atravessando várias gerações – era sempre uma delícia. A primeira vez que fui até lá foi para saudar Mário, que tinha acabado de nascer: Perseu encheu o carro com colegas de classe e nos levou para conhecer o recém-nascido. Era de noite e Zilah, que mal tinha dado à luz e já estava trabalhando em seu emprego o dia inteiro, ainda preparava na cozinha um pavê para a sobremesa. Deu-me a receita, que guardo até hoje e que preparo também. Era naquele primeiro andar de uma casa na Lapa com uma cozinha enorme, cujo piso, de ladrilhos brancos e pretos alternados, formava xadrez. Perseu dizia que seus tios (Fúlvio, Cláudio, Lélia, Lívio quando estava por aqui) mais seu pai Athos gostavam de jogar xadrez sentados no chão da cozinha, usando panelas e caldeirões como peças. Os Abramo assim procediam, acrescentava, só para assegurar seu “status social de loucos”…
Tinha Zilah suas afeições perduráveis. Uma era por Antonio Candido. Foi aluna dele em Ciências Sociais e nunca mais desatou os laços. Costumava dizer que era discípula da legendária revista Clima, pois, aluna dele e de Ruy Coelho na Faculdade, já tinha sido aluna de Lourival Gomes Machado, seu professor de literatura no Ginásio e Escola de Comércio de Perdizes. Os três eram membros da supracitada revista. Foi este último quem a apresentou a Macunaíma, que seria para sempre um de seus livros favoritos.
No ginásio, ganhou o prêmio de excelência no último ano, pelo qual seria dispensada de pagar anuidade. Mas a diretora Júlia de Almeida (a escola era administrada por três educadoras com formação no Des Oiseaux) ponderou que o prêmio iria para sua irmã menor, Nícia, que estava entrando: seria mais proveitoso porque assim esta não pagaria nada por todos os quatro anos que duraria o ginásio.
Uma fortaleza para filhos, netos, parentela. A lealdade, somada à bondade e à tolerância, era um pilar de sua personalidade, e extravasava para fora dos laços de sangue. Bem-aventurado quem ficou por perto.