No mundo imaginário em que ditadura ou intervenção militar é melhor do que democracia, um dos fatores positivos é que a pequena quantidade de partidos e de políticos e, portanto, de corrupção, faz com que a quantidade de impostos seja menor.

No mundo real, a ditadura militar no Brasil, com a participação efetiva de empresários, não apenas manteve práticas como propina e caixa dois, como aumentou a quantidade de impostos para os mais pobres do país. Esse imposto que cobra mais dos pobres é aquele que, até nossos dias, não recai sobre a renda, e sim sobre a compra de produtos e serviços.

Nunca é demais lembrar que a ditadura de 1964 a 1984 também fez a dívida pública brasileira, externa e interna, explodir.

Quem fala sobre isso é o professor de História e Relações Internacionais da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Pedro Pedreira de Campos, pesquisador do período da ditadura empresarial-militar no Brasil. Veja aqui a segunda parte da entrevista:

Um dos trechos do seu livro fala na criação, durante a ditadura militar, de caixa dois para campanhas políticas. Isso é curioso, para um período em que não havia eleições regularmente, ou em que havia eleições de fachada.

A prática de caixa dois é muito comum na história brasileira. É algo muito comum em países capitalistas. E durante a ditadura brasileira não deixou de existir, pelo contrário. Havia muitos empresários que eram eles próprios candidatos, que reforçavam, com a ajuda de amigos, seus caixas. O que a gente enxerga na ditadura, no tema da chamada corrupção, é que havia um clima ideal para práticas irregulares, ilegais, tendo em vista que os mecanismos de apuração e controle ou não operavam, ou estavam amordaçados. Assim, a imprensa, a sociedade civil, os sindicatos, os partidos de oposição, o parlamento, o Ministério Público, a Polícia Federal, o Judiciário, todos esses organismos, ou não funcionavam, ou funcionavam parcialmente, pois era um regime autoritário, de força. E era o espaço ideal também para a ação dos empresários sobre o Estado. Isso acontecia também através das eleições.

Seu livro cita também ministros da ditadura que costumavam pedir caixinhas. Quais eram?

É importante dizer que não foi a ditadura que inventou a prática da corrupção. Mas tampouco acabou com ela, como alguns dizem. Ao contrário, criou um cenário ideal para que a corrupção florescesse. Havia personagens, como por exemplo o Delfim Netto, que teve um poder significativo na ditadura, que é famoso por receber propinas de empresários. Existem vários relatos, denúncias e acusações neste sentido. Quando ele esteve à frente da embaixada na França, ficou conhecido como o “monsieur dix pour cent”. E, talvez mais grave, ele é acusado de ter montado a caixinha para a Operação Bandeirante, aquela ação de repressão do regime. E é interessante notar que o Delfim expressa o próprio caráter do regime: ele tinha poder não por indicação do ditador; ele tinha poder por componentes diretos do regime que eram os empresários. A ditadura não era exclusivamente militar, era empresarial também. Isso tudo está fartamente denunciado em diversos canais. Ele era um personagem famoso, mas havia outros. À frente da pasta dos Transportes estava o ministro Mário Andreazza, conhecido como o príncipe das empreiteiras. Famoso por práticas ilegais como propinas. Outro caso famoso é o da Rede Globo, que recebeu uma concessão ilegal no início da ditadura.

Algo que se fala com muita frequência é que na época da ditadura não havia tanta violência. O clima de segurança pública seria muito mais favorável. Isso é fato?

Acho que não. Na ditadura, de fato, o crime organizado não tinha o grau de complexidade que tínhamos naquele período. Mas na década de 1980, o Brasil vira rota do tráfico internacional de drogas. O tráfico cresceu muito e a distribuição de armas para a população também cresceu.

Na década de 1980 ainda éramos governados pelo regime militar. E isso não impediu que nosso território fosse anexado, apropriado pelo tráfico internacional de drogas.

Exatamente. E tem mais uma coisa. A ditadura incidiu sobre a sociedade brasileira de forma a concentrar muita renda. O Brasil que sai da ditadura é um país mais segregado do que quando entrou. Toda essa injustiça vai alimentar de certa forma a criminalidade. Então, os índices de criminalidade eram menores, especialmente durante o período conhecido como milagre econômico (1963-73), mas a ditadura, através do legado que deixa – uma dívida pública muito significativa, que engessa a política econômica brasileira, aumento das injustiças sociais, da concentração fundiária – vai deixar um terreno fértil para a insegurança que nós vivemos nos dias atuais. E essa estrutura tributária injusta, que incide mais sobre o consumo do que sobre a renda, foi em grande medida criada no PAEG (Programa de Ação Econômica do Governo). Nesta época o regime criou impostos como IPI, ICMS, que são cobrados no momento do consumo, o que prejudica quem ganha menos.

Naquele período também houve aumento da carga tributária em relação ao PIB?

Sim, subiu da ordem de 15% para 25%. E com esse viés: quem ganha menos paga mais e os ricos pagam menos.

Outra coisa que se diz é que na época dos militares havia poucas favelas. O número de favelas não teria passado a aumentar, com a transição democrática, porque a repressão não pôde mais deter as ocupações e a esconder a desigualdade?

Naquela época houve um aumento grande do êxodo rural para as cidades e um crescimento desordenado dos centros urbanos. Há uma maior desigualdade internamente às cidades. Em grande parte, justamente por falta de participação popular nas decisões estatais, de consulta, junto às prefeituras, aos governos estaduais e às agências federais, há intensificação de investimentos em áreas e bairros nobres – metrô e outros – e poucos investimentos em áreas periféricas. As cidades se tornam ainda mais injustas durante a ditadura. Justamente pela pouca participação que as classes populares tinham no processo político, e não apenas no processo eleitoral, mas porque tinham seus canais de protesto e expressão inibidos naquele período. As cidades então se tornam mais favelizadas. A ditadura intensificou esse processo.

Olha, a ditadura entregou algumas batatas quentes para o novo regime. A ditadura adquiriu uma dívida pública enorme que até hoje é paga pela sociedade brasileira, e que nenhum governo até agora enfrentou – tentar renegociar, fazer auditoria ou moratória. Mas o fato é que os juros dessa dívida são pagos até hoje, com dinheiro público (ao final de 1984, último ano completo sob a ditadura, o Brasil devia a governos e bancos estrangeiros o equivalente a 53,8% de seu Produto Interno Bruto, ou seja, de toda a renda gerada no país).

*Programa de Ação Econômica do Governo, instaurado pela ditadura.

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