Desigualdades raciais e a Década dos Afrodescendentes
Por Jaqueline Lima Santos*
Nos últimos anos os movimentos de combate ao racismo têm levado a denúncia das desigualdades raciais para a esfera internacional. A negligência do Estado frente às diferenças de tratamento e oportunidades levou à articulação de movimentos sociais negros de diferentes países para a atuação conjunta a fim de pressionar, de fora para dentro, a tomada de posição e a implementação de políticas públicas que, de fato, reflitam sobre a realidade da população negra. Este cenário construído – em especial após a intervenção de ativistas na III Conferência Mundial Contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerâncias Correlatas realizada em Durban, África do Sul (2001) – levou a Organização das Nações Unidas (ONU) a decretar 2011 como o Ano Internacional dos Afrodescendentes. Um ano foi insuficiente para compreender as especificidades deste segmento nos diferentes países e contextos, mas possibilitou que a agenda das relações raciais ganhasse mais espaço nas instâncias internacionais – o que coloca pressão sobre os Estados e fortalece a atuação de movimentos locais (os grandes protagonistas das denúncias).
Historicamente o ativismo negro sempre esteve em busca de alternativas locais e autônomas para garantia de melhores condições de vida. Dos quilombos formados no período colonial às associações comunitárias das periferias, das salas de alfabetização existentes nos Clubes Sociais Negros no início do século XX aos cursinhos comunitários para jovens negros/periféricos, das rodas de Jongo do século XIX às batalhas de Slam de hoje. Para as maiores vítimas históricas do racismo, sobreviver, praticar suas manifestações culturais e buscar romper as estatísticas sempre foi um ato de resistência. A luta está no corpo e na marca que carregam. A partir da experiência vivida os movimentos negros criaram narrativas que, mesmo fora dos espaços institucionais, apontaram para questões emergenciais para a sociedade e o Estado brasileiro.
No ano de 2013 a Organização das Nações Unidas (ONU) enviou ao Brasil um grupo de especialistas sobre questão racial e pessoas afrodescendentes. A partir de um intenso processo de escuta de atores e movimentos de diferentes setores, este grupo elaborou um documento no qual analisa dados sobre a condição da população negra de forma transversal e apresenta orientações para o país avançar na agenda pró-equidade racial, o qual é tomado como referencial para o desenvolvimento de ações locais dentro do marco da Década Internacional dos Afrodescendentes (2015-2024). Os campos de destaque são educação, trabalho, acesso à justiça, acesso à terra e combate à violência racial.
Neste documento, o grupo de especialistas reconhece todos os esforços desempenhados na última década para diminuição das desigualdades raciais no Brasil, estes que são frutos da luta histórica e participação política do movimento negro. Como principal desafio, aponta ainda a dificuldade de reconhecer e superar o racismo como problemática estruturante no país. De forma mais direta, consideram que embora hajam diferentes programas pró-equidade racial, os atores sociais que executam as políticas públicas nas pontas não têm a compreensão necessária sobre a história e realidade dos afrodescendentes, isto porque, mesmo dada a importância da temática, esta desaparece de seus processos formativos e, assim, da sua atuação cotidiana.
Como exemplo, podemos trazer a forma como a questão racial tem sido tratada no judiciário, onde as leis que criminalizam o racismo têm pouca aplicabilidade. Quase a totalidade dos julgamentos têm resultados favoráveis aos acusados, e não às vítimas. Ao mesmo tempo, a maior parte da população carcerária é composta de negros e negras – em um cenário em que 40% dos presos cumprem pena sem julgamento. Isso implica que, se por um lado há consenso de que o racismo se configura como um obstáculo para a garantia dos direitos fundamentais, há, por outro lado, pouca institucionalidade das políticas de promoção da equidade racial. Ou seja, um dos desafios é passar do plano da denúncia para o plano de intervenção política.
Um paradoxo se estabelece aqui: ao mesmo tempo em que a narrativa sobre o racismo como problemática social é aceita, esta não reverbera sobre as práticas cotidianas. Quando cobrados sobre seu lugar e papel na dinâmica das relações raciais para que a temática tenha, de fato, impacto sobre a realidade, essa agenda passa a ser geradora de conflito.
Os movimentos pressionaram, houve mudanças no plano legal, mas o Estado não colocou recursos suficientes para possibilitar uma mudança estrutural. O Brasil tem hoje uma legislação avançada no que se refere à promoção da igualdade racial, mas não um suporte com capital humano e financeiro que garanta sua execução conforme as reivindicações da sociedade civil e orientações técnicas de especialistas da área.
Em 2018 completamos 130 anos da abolição da escravatura. No entanto, o país ainda não conseguiu criar condições equânimes para os diferentes grupos que compõem sua população. No pós-abolição foram diferentes grupos negros que buscaram cidadania e real integração à sociedade brasileira ao reivindicar que os direitos universais também fossem seus direitos. Após décadas de reivindicações inaudíveis na esfera institucional, começaram a tomar um rumo cada vez mais africanista e se associar às lutas internacionais. Com a redemocratização, os movimentos sociais negros voltam a ocupar esferas institucionais com a aposta de que as políticas de promoção da igualdade racial devem ser assumidas pelo Estado. Entretanto, mesmo diante de tantos avanços, essa foi uma agenda de troca e barganha em momentos de avanço das ondas conservadoras. Este fenômeno quase causa um novo rompimento com as esferas institucionais, o que não se constituiu devido à crise da democracia – instaurada com o Golpe de 2016 – que criou a necessidade de fortalecer os laços entre movimentos sociais de esquerda. Mesmo diante das necessidade imediatas as críticas continuam e precisam ser levadas em consideração na construção do novo projeto político da esquerda para o Brasil: não adianta denúnciar de dentro para fora sem olhar as contradições internas, reconfigurar o campo de representações e levar a sério a institucionalidade das agendas de combate ao racismo.
A violência e a atuação do braço repressor do Estado – polícias -, o acesso negado à justiça, às oportunidades dignas de trabalho e à educação de qualidade e a falta de reconhecimento das contribuições da população negra para a formação do país demonstram que, embora tenhamos ganhado no plano da denúncia – desde que tornou-se politicamente correto afirmar que o racismo existe e é um problema de toda a sociedade -, ainda temos muito o que caminhar no campo da institucionalidade.
As reivindicações dos movimentos sociais negros, pautadas pelas necessidades imediatas vivenciadas pela população da periferias, a qual, sabemos, é majoritariamente negra, apontam para mudanças estruturais no país. Assumi-las envolve autocrítica, enfrentamento aos setores conservadores e valorização das representações e grupos afrodescendentes.
* Jaqueline Lima Santos é doutoranda em Antropologia Social, militante do movimento negro e consultora do Reconexão Periferias.
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