O espaço dado para as comunidades terapêuticas, com o selo oficial do governo, pode ser a senha para um retrocesso que atinja o atendimento psicossocial como um todo, teme Fernanda Magano, presidenta do Sindicato dos Psicólogos de São Paulo.

Ela lembra que a escalada autoritária atingiu mais duramente a área de saúde mental em dezembro, quando o Ministério da Saúde apresentou a portaria 3588/17 ao Conselho Nacional de Saúde sem permitir, no entanto, o debate sobre o projeto. “Bem ao estilo do golpe, tudo vai tramitando como se estivéssemos na institucionalidade. O Conselho foi ignorado pelo governo, que não deixou sequer os titulares pedirem vistas. É um fascismo edulcorado”, diz a psicóloga.

A portaria define maiores repasses de verbas para hospitais que ampliarem o número de leitos psiquiátricos. Aponta também mudanças na estrutura dos Caps, criando maior espaço para internações.

No início de 2018, a resolução número 1 do Conad, apresentada sem debate prévio pelo então ministro do Desenvolvimento Osmar Terra, representou outro golpe na luta antimanicomial. No próprio site do Ministério, a proposta é apresentada como “guinada rumo à abstinência”. Para Osmar Terra, a proposta de redução de danos, orientadora da Raps até então, “incentiva” o uso de entorpecentes.

Com a mudança de concepção política, impõe-se a repressão. O decreto chega a falar que o tratamento deve espelhar a opinião majoritariamente contrária da população ao consumo de drogas, confundindo comércio e uso como equivalentes.

O psicanalista Antonio Sergio Gonçalves explica que o conceito de redução de danos não significa tolerância ao uso, mas sim o entendimento que todos, mesmo aqueles ainda não abstêmios, têm direito à atenção do serviço público de saúde. Ele lembra que as comunidades terapêuticas, onde o paciente fica apartado do convívio social e das possibilidades de uso da substância de que é dependente, costumam se apresentar como mais eficazes. “Claro, enquanto o paciente está preso, o uso é zero. Mas e quando sai de lá?”. A redução de danos, por sua vez, tem a interrupção do uso de substâncias químicas como meta, porém sem a crença em soluções impositivas.

Outra característica das comunidades terapêuticas é que, embora cobrem mensalidades e muitas contem com repasse de verbas públicas, recebem doações de familiares, amigos e vizinhos, na forma de dinheiro ou cestas básicas.

Prefeito escolhe onde gastar
Outro retrocesso na área de saúde mental sob o golpe se dá via repartição de verbas. Não bastasse a PEC 95, aquela que congela os gastos com saúde e educação, a Comissão Intergestores Tripartite, ligada ao Ministério da Saúde, definiu também em 2018 que o repasse de dinheiro para as prefeituras não deve mais definir percentuais a serem aplicados nas diferentes políticas e ações de saúde. “Tudo vai agora sem carimbo, e os prefeitos é que vão definir quanto aplicar em cada política. É de se supor que darão prioridade a ações de maior visibilidade ou que geram mais pressão por parte da mídia e do eleitorado”, conclui Rogério Giannini.

Os ventos do golpe arrastam para longe concepções de dignidade e participação social. Isso também terá efeitos sobre os destinos das verbas para saúde e, especialmente, sobre seu uso. Um reflexo disso pode ser visto em São Paulo. Além de ter desmontado o projeto Braços Abertos, sob a acusação de ser ineficaz, a gestão tucana da cidade apagou uma prática dos tempos de Fernando Haddad que faz muita falta, segundo Maria Eugênia Mesquita, ex-interlocutora de Saúde Mental na Coordenadoria de Saúde da região Centro.

“Em nossa gestão, nós realizávamos reuniões periódicas com representantes de todos os equipamentos de saúde atuantes na cidade. Isso incluía órgãos do estado, geridos por outro partido, ONGs, casas de acolhimento. Até porque um mesmo paciente pode passar por todos esses serviços. Então, debatíamos as ações, em busca de melhor compreensão e resultado. Não se constrói política sozinho”, conta a psiquiatra. Hoje, o isolamento foi reinstalado.

“Sempre há focos de resistência, trabalhadores e trabalhadoras com visão diferente. Mas a política adotada pela administração tem poder determinante”, diz Maria Eugênia. Ela lembra que trabalhadores contratados por organizações sociais, que prestam atendimento em parceria com a prefeitura, são mais vulneráveis à pressão e às disputas políticas. “São mais facilmente puníveis. A rede pública depende muito da direção dessas organizações”, diz.

Sem democracia, sem saúde mental
Na última sexta-feira, 18 de maio, foi comemorado o Dia Nacional de Luta Antimanicomial. A data completou trinta anos. Em diversas cidades do Brasil, pacientes, familiares e trabalhadores da Raps realizaram atividades de denúncia do golpe e seu efeitos sobre a política pública de saúde mental.

Em Porto Alegre, por exemplo, o tema do dia foi “Loucos por Democracia”. Em Belo Horizonte, os coletivos adotaram “Atentas e Fortes: Tantãs sem Temer os Golpes” e “Liberdade Ainda que Tam-Tam”. Democracia e saúde mental têm profunda ligação. Uma não vive sem a outra, diz Giannini.

“Democracia é a forma terapêutica. Sem democracia não há saúde, não há saúde mental”, diz o presidente do Conselho Federal de Psicologia. Embora já antiga, a luta por democracia na área de saúde mental – liberdade, dignidade – ainda não atingiu resultados plenos, e não apenas em virtude dos recentes recuos pós-golpe. Para se ter uma ideia da dimensão do desafio, faz apenas pouco mais de um mês que a cidade de Sorocaba, interior de São Paulo, fechou seu último manicômio em operação. Um dos quatro pacientes ainda internados vivia na clausura havia trinta anos.

O Hospital Vera Cruz era uma espécie de prisão. Dois grandes galpões com vários elementos que o assemelhavam às masmorras. A persistência desse tipo de instituição em Sorocaba e região se explica, entre outras razões, pelo fato de o antigo secretário de Saúde da cidade ser sócio de comunidades terapêuticas e ter recebido apoio público do prefeito, mesmo após a ocorrência de mortes no manicômio. Em pelo menos uma ocasião o Ministério Público desprezou denúncias dos movimentos de luta antimanicomial. Porém, a resistência dos coletivos resultou em um termo de ajustamento de conduta, assinado em 2012, que levou ao gradual encerramento das atividades.

A presença de empresários do setor de comunidades terapêuticas em postos-chave na cadeia decisória da Saúde Pública é sempre um risco. Profissionais de saúde que as defendem, igualmente sinalizador de retrocessos caso tenham a caneta em mãos. Entrevistados afirmam que dois exemplos desse tipo de recuo que pode se espalhar ocorreram em 2011, quando o governo federal incluiu as comunidades terapêuticas no plano de tratamento de dependentes químicos, e em 2015, quando foi empossado coordenador de Saúde Mental Valencius Wurch Duarte Filho, defensor e ex-administrador de manicômio.

Internação é uma boa?
A presidenta do Sindicato dos Psicólogos do Estado de São Paulo identifica na fragilidade dos que sofrem uma brecha para a aprovação do encaminhamento manicomial. “Há um jogo sujo emocional”, diz.

As famílias e os amigos tendem a aprovar a internação, porque parece algo bom. “As pessoas decidem a partir de suas experiências diretas. Que são sempre dolorosas. O pai alcoólatra que bate nos filhos, o filho que rouba objetos para pagar a droga. Se internado, o problema deixa de estar presente. A pessoa tende a achar que a situação melhorou”, concorda Rogério Giannini.

Qual a diferença entre aqueles que foram internados e os que hoje são atendidos pela Raps?

A resposta pode estar no exemplo de J.R. (mulher, aqui mantida em sigilo por motivos óbvios) que, após um ano de Caps, avançou de uma situação próxima à condição de rua e hoje, pelo testemunho que vimos, está viva, de banho tomado, cabelo cortado, e consciente de sua condição: “Tenho problema mental. Quero melhorar”.