Brasil do golpe e seus retrocessos: duzentos anos em dois
O marketing do governo do golpe foi tímido. Afirmou que o Brasil voltou vinte anos em dois. Trata-se de modéstia excessiva. O slogan não faz jus à hercúlea tarefa regressiva e destrutiva que o atual governo ilegítimo submete o país e seu povo. Nunca se destruiu tanto em tão pouco tempo. Sequer Átila, o huno, chega perto. Aqui vão alguns poucos exemplos dessa fenomenal proeza política, social e econômica.
A presidenta honesta e legítima foi afastada do poder, sem cometimento de crime de responsabilidade, num autêntico golpe de Estado que rompeu com as regras do jogo democrático estabelecidas na Constituição de 1988. Todo o progresso democrático duramente obtido ao longo de décadas de luta foi cinicamente revertido e a soberania popular foi desmontada. Voltamos a ser uma lamentável republiqueta de bananas.
Na esteira da ruptura democrática, gerou-se um Estado de Exceção seletivo, que atropela direitos e garantias fundamentais inscritos na Constituição e nos tratados internacionais de direitos humanos. Trabalhadores, professores, sindicatos, organizações sociais e oposicionistas tornaram-se alvos de perseguições e lawfares de variadas intensidades. Reitores inocentes se suicidam. O candidato preferido do povo é encarcerado com base num processo que não apresentou nenhuma prova sólida e consistente de culpa. Setores da Justiça se transformaram em braço inquisitorial da política autoritária.
Também na esteira da ruptura democrática, criou-se uma cultura de ódio político que cindiu a sociedade civil e libertou uma onda fascistoide que ameaça seriamente o que restou da democracia brasileira. Racismo, homofobia, misoginia, preconceitos regionais e de classe voltaram a se manifestar com crueza e alimentam a principal candidatura da direita pós-golpe.
O centro político, cuja disputa permitia a alternância democrática do poder, esfumou-se, comprometendo a articulação política de soluções conciliatórias e de governabilidade.
Com a Emenda Constitucional nº 95, o governo golpista sustou investimentos econômicos e sociais por longos vinte anos, algo inédito no mundo inteiro, condenando a população mais pobre, que depende de serviços públicos gratuitos, a uma vida de penúria. Essa austeridade draconiana e permanente também condena o Brasil à estagnação, pois um país como o nosso depende de investimentos públicos para o seu desenvolvimento e para a reativação da economia.
A recuperação econômica, prometida de forma praticamente imediata após o golpe, não veio. Em 2016, primeiro ano do golpe, o PIB caiu espantosos 3,6%. Em 2017, houve um episódio de espasmo de crescimento de apenas 1%, o que significa, na realidade, estagnação do PIB per capita em ridículos 0,2%. Ressalta-se que esse “fenomenal” crescimento ocorreu devido a fatos que não tinham relação com a política contracionista do golpe. Houve aumento conjuntural da atividade agropecuária no primeiro trimestre e liberação do FGTS no segundo trimestre. Esgotados esses fatores episódicos, o PIB voltou a estagnar no quarto trimestre.
Neste ano, a prévia do Banco Central indica recuo econômico de 0,13% no primeiro trimestre, demonstrando que a recuperação econômica do golpe é apenas uma jogada de marketing. Uma autêntica recuperação econômica teria de ser robusta e sustentada. Os dados demonstram o oposto disso. Em 2017, a taxa de investimentos foi de apenas 15,6% do PIB, a menor da série histórica do IBGE. Sem investimento não há crescimento e desenvolvimento. Não há marketing que conserte isso.
Com a infame Reforma Trabalhista, que destruiu os direitos consagrados na CLT, o governo do golpe prometeu empregos em abundância. Ocorreu o oposto. Entre maio de 2016 e março de 2018, os dados do Caged (MTB) mostram a destruição de 717 mil empregos com carteira assinada. No mesmo período, a taxa de desemprego medida pelo IBGE aumentou de 11,2% para 13,1%. Em números absolutos, isso significou um aumento de 2,3 milhões no estoque de desempregados.
O desemprego aumenta e a desigualdade e a pobreza também. Os rendimentos da população 5% mais pobre caíram espantosos 38%, em 2017, segundo os dados da PNADC do IBGE. Entre os 50% mais pobres, o recuo foi de 2,45%. Com isso, o número de pessoas na extrema pobreza aumentou em 1,5 milhão, entre 2016 e 2017, e o número de pessoas na pobreza aumentou em quase 500 mil, no mesmo período. Portanto, o golpe gerou mais de dois milhões de pobres e pobres extremos no Brasil. Um milhão de pobres a mais por ano de golpe, em média.
Mesmo com esse aumento da pobreza, o governo do golpe cortou cerca de 1,3 milhão de pessoas do Bolsa Família, em 2017.
Segundo dados do Sisvan (Ministério da Saúde), o percentual de crianças menores de cinco anos em estado de desnutrição aumentou de 12,6% para 13,1%, entre 2016 e 2017. Mais uma façanha social do golpe.
E os cortes continuam. Em abril deste ano, o governo do golpe desligou 392 mil famílias do Programa Bolsa Família. Trata-se do segundo maior corte da história. Só perde para a retirada de 543 mil famílias, entre junho e julho de 2017.
Quanto ao salário mínimo, houve queda real, tanto em 2017 (-0,10%), quanto em 2018 (-0,26%). Saliente-se que, nos governos do PT o salário mínimo teve aumento real de 77%.
Devido ao aumento real de 17% nos preços de gás de cozinha, cerca de 1,2 milhão de famílias voltaram a cozinhar com lenha, um retrocesso absurdo, que nos leva a tempos de pré-modernidade. Observe-se que nos governos do PT ocorreu o contrário: o gás de cozinha teve decréscimo real de 17%.
No campo da Saúde, houve queda real de R$ 6 bilhões nos valores pagos, entre 2014 e 2017, retirando do cálculo as emendas impositivas. A tendência inexorável é a degradação contínua do quadro de prevenção a epidemias e de atendimento à população mais pobre. Ressalte-se que a rede própria do Farmácia Popular já está extinta.
Na Educação o quadro é pior. Em termos reais, as despesas discricionárias do MEC (aquelas que podem ser cortadas) caíram 44%, entre 2014 e 2018, passando de R$ 39 bilhões para R$ 22 bilhões. Com isso, os contratos do Fies caíram de 690 mil, em 2014, para 171 mil, em 2017. Programas como o Ciência sem Fronteiras foram simplesmente extintos.
No que tange ao Minha Casa Minha Vida, o maior programa de habitação popular da história, houve queda de 83% nos valores pagos, entre 2015 e 2017. Muita gente está voltando a habitar nas ruas.
Mas, além dessa ofensiva cruel contra a população mais pobre, há também a ofensiva contra o patrimônio público e a soberania nacional.
O governo do golpe acabou com a política de conteúdo nacional promovida pela Petrobras. Com isso, o setor da indústria naval que no seu pico teve cerca de 84 mil trabalhadores (2014), atualmente não possui mais de 30 mil. Ou seja, mais de 50 mil trabalhadores foram demitidos entre 2014 e 2017, segundo dados do Sindicato dos Metalúrgicos de Niterói e do Sinaval. No Rio de Janeiro, em dezembro de 2014, havia cerca de trinta mil trabalhadores diretos no setor naval em quinze estaleiros. Ao final 2017, eram cerca de 4.500 trabalhadores em apenas quatro estaleiros. Ou seja, foram fechados 11 estaleiros e cerca de 25.500 postos de trabalho. Hoje, a Petrobras importa plataformas, sondas e navios da Coreia, China, Holanda, etc, gerando empregos no exterior.
Entretanto, a extinção da política de conteúdo local não é uma iniciativa isolada e pontual. Na realidade, ela se insere no contexto maior de uma política de entrega do pré-sal e da própria Petrobras a empresas estrangeiras. O que se pretende é a desnacionalização completa de toda a cadeia de petróleo e gás, seguindo a lógica estreita e predatória de obter recursos no curto prazo para remunerar acionistas privados, saldar dívidas e fazer caixa contábil para financiar déficits.
Nesse diapasão, os campos de petróleo, tanto pré-sal como do pós-sal, estão sendo praticamente doados. Como exemplo, podemos citar a “venda” de 66% do Campo de Carcará, considerado uma das “joias da coroa” por apenas US$ 2,5 bilhões, pagos pela petroleira norueguesa Statoil. Carcará é uma das maiores descobertas do pré-sal feitas pela Petrobras. Segundo estimativas da própria Statoil, o campo de Carcará detém, com toda segurança, entre cerca de setecentos milhões a 1,3 bilhão de barris de óleo equivalente. Dado o pagamento programado, o valor presente líquido depois de impostos é de cerca de US$ 2 bilhões, o que significa que a Statoil adquiriu esses recursos por US$ 2 a US$ 3 por barril. Trata-se de um escândalo. Praticamente uma doação. São poços que produzem mais de quarenta mil barris por dia de petróleo equivalente, produção muitíssimo acima dos padrões mundiais.
A mesma política predatória, que visa apenas remunerar investidores estrangeiros, está sendo aplicada à privatização da Eletrobras. Segundo contas da Fiesp, a liberação dos preços da energia embutida na proposta poderia acarretar um custo adicional aos consumidores que pode variar de R$ 220 bilhões a R$ 460 bilhões em trinta anos. Ademais, o bônus de outorga pela Eletrobras poderia chegar a R$ 70 bilhões, muito acima do valor de R$ 12 bilhões atualmente propostos.
Na área de alta tecnologia, a venda da Embraer à Boeing, que o governo poderia vetar, se quisesse, significa perda da nossa maior empresa de tecnologia sofisticada, com repercussões gravíssimas no campo da Defesa Nacional.
No campo da política externa, a nova diretriz central do golpe é de privilegiar o eixo geopolítico Norte-Sul das relações internacionais do país, e colocar a política externa brasileira sob a órbita dos interesses estratégicos do Estados Unidos e aliados, com fortes prejuízos para o protagonismo internacional do Brasil e sua independência no cenário mundial. Por isso, seu grande empenho, hoje, é ingressar na OCDE, o chamado Clube dos Ricos, o qual imporá seus valores e diretrizes liberais ao Brasil. Ademais, o golpe colocou ênfase na assinatura de acordos econômicos e comerciais bilaterais e regionais assimétricos de “nova geração” com países desenvolvidos, os quais poderiam impedir a implantação de políticas de desenvolvimento, de industrialização, de ciência e tecnologia, saúde pública, ambiental etc. O objetivo é a subserviência aos valores do capital financeiro internacional.
O governo do golpe, ao privilegiar novamente as relações assimétricas com os Estados Unidos, vem abandonando progressivamente sua participação nos BRICS e reduzindo seu significado geoestratégico para a inserção do país no cenário mundial. As participações do Brasil nas últimas reuniões têm sido pífias, sem propor quaisquer iniciativas, ao contrário do que acontecia no passado. Na reunião em GOA, por exemplo, realizada em 2016, Temer ficou claramente isolado e sem discurso. Além disso, a política externa passiva e submissa do golpe vem desinvestindo no Mercosul e na Unasul, eixos básicos da integração regional.
O golpe apequenou o Brasil. Nos governos do PT, o Brasil, com seu soft power, se tornou ator internacional de primeira grandeza. Não havia foro mundial no qual não tivéssemos participação decisiva, e Lula se converteu num influente líder mundial, símbolo internacional da luta por um mundo sem fome e sem pobreza e mais justo e equilibrado. Lula era o “cara”, segundo o próprio Obama.
Com o golpe, o Brasil se converteu num pária internacional. Os grandes líderes mundiais evitam encontros bilaterais com Michel Temer, representante de um governo corrupto e sem legitimidade. A agenda diplomática do Brasil tornou-se anêmica e o país perdeu influência em todos os foros regionais e mundiais. Chefes de Estado que vêm à América do Sul evitam passar pelo Brasil. Temer converteu-se no “cara a ser evitado”.
Esses são apenas alguns poucos exemplos da destruição sistemática e generalizada que o golpe vem produzindo no Brasil. É a maior tragédia histórica do país. Em vez de vinte anos de retrocesso em dois, temos, na verdade, duzentos anos de regressões em dois.
Estamos regredindo ao estágio do Brasil colônia. A um estágio pré-independência. Uma coisa certa: tem gente lucrando muito com isso.
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