Praticantes, votantes, participantes, diletantes…
Desde criança conheço a expressão: católico praticante. Usava-se para distinguir dos católicos apenas batizados, os não praticantes. E o que era o praticante? Em geral, era o que, pelo menos, ia semanalmente à igreja, comungava de vez em quando. Coisas triviais, nem precisava jejuar na sexta-feira santa. No máximo, abria mão do filé e comia peixe.
Nunca ouvi alguém falar em evangélico praticante. Por quê? Em certo sentido, podemos falar de protestante não praticante. É possível achá-los entre as correntes tradicionais do protestantismo – metodistas, anglicanos, batistas, luteranos, entre outros. O general Eisenhower, por exemplo, era desses – virou outra coisa quando foi ‘rebatizado” na própria Casa Branca, pelo pastor Billy Graham. Nos Estados Unidos é usual usar essa expressão: born again christian. Cristão ‘renascido” – ou seja reincorporado á rotina praticante.
As chamadas correntes evangélicas – pentecostais ou protopentecostais – não parecem ter “não praticantes”. Evangélicos são usualmente praticantes – vão ao culto toda semana. Mais do que isso. Muitos vão mais vezes à igreja, enviam os filhos para atividades de jovens, crianças. Participam de círculos bíblicos, grupos de jovens e mulheres, organizam campanhas de proselitismo e venda de publicações, de conquista de adeptos e “associados”.Muitas igrejas dessas igrejas realizam um notável e dedicado serviço social, de apoio aos “irmãos”, de atração de fiéis. Oferecem cursos, grupos de teatro, creches, orientação para emprego, moradia, legalização de documentos, informam sobre o acesso a serviços públicos e assim por diante. Socializam. E, para ajudar, nos intervalos o fiel ouve seus pastores e cantores no rádio, cadeias enormes de rádio e TV. Nas ruas comerciais das grandes cidades, lojas ou cinemas que fecham são com frequência alugados para alguma igreja desse perfil, não importa sua denominação. Nos bairros periféricos, desde a metade dos anos 1980, vemos a multiplicação de pequenos galpões. Com o tempo, transformam-se em templos maiores, alguns bastante imponentes – suficientemente amplos para abrigar todas essas atividades.
Dada essa máquina azeitada e essa paciente intervenção no cotidiano, quando organizam uma “marcha de Jesus” aquela multidão não é surpresa – é resultado de um intenso “trabalho de base”.
Você já ouviu falar de esquerda praticante? Acho que não. Talvez “militante” – mas isso se aplica a grupos minúsculos, quase profissionais. Faça um levantamento de seus amigos que votam à esquerda: quantos deles participam de algum “culto” mensal? Não precisa ser semanal, pode ser mensal. Qualquer atividade dessa natureza – reunião, debate, atividade cultural, manifestação, passeata. Pode contar. Eu contei. Alguns, digamos, participam de “círculos” virtuais, os da internet, simulacro de rodas de conversa, um pouco toscas, incompletas. Substitutas claramente insuficientes daquela outra atividade “praticante”.
Talvez por isso seja tão frequente ouvir de tantas pessoas, observações assim: a esquerda deixou de fazer isto, precisa fazer aquilo… Sempre na terceira pessoa. Nunca ou quase nunca a frase tem este padrão: “nós, da esquerda” não fizemos isto ou não fizemos aquilo. Esse distanciamento na palavra é consequência do distanciamento “físico”. Parece inexistir identidade coletiva construída nesse aparato virtual.
Durante os anos 1970, mesmo sob a ditadura, houve uma difícil mas progressiva recomposição da esquerda política. Um crescimento de seus ativistas e militantes com fundamento em uma base social clara, uma rede de conexões que se propagava. E isso iria vir à luz com o declínio da ditadura e a “redemocratização” dos anos 1980.
Esse crescimento foi muito alimentado pela forja de militantes e ativistas que vinham de sindicatos e igrejas. A base social relevante da esquerda política começou a ser essa: os movimentos do “povo pobre da periferia”, expressão preferida dos católicos e dos maoístas, a corrente política mais “casada” com os religiosos.
Sim, era daí que saia o grosso da militância e dos filiados do PT, por exemplo. Ou das oposições sindicais. Ou da futura CUT. Porque os sindicatos e esses movimentos populares – tantas vezes nucleados em paróquias perdidas em bairros precários – eram os “lugares” da semeadura. Era ali que se realizava aquela atividade regular, constante, de formação de identidades e afinidades, de hábitos de pensamento e de comportamento. Hábitos de encontro – a palavra igreja vem de Eclésia, assembleia, encontro, e não é por acaso.
Quando a base social da esquerda política se fragmenta, desintegra, amolece, a dificuldade para promover grandes enfrentamentos é terrível. Até mesmo grandes enfrentamentos eleitorais, os menos arriscados para as pessoas. Os outros, mais ainda. Depois de 1980, principalmente, as empresas começaram a passar por “reengenharias”. Foram fragmentadas e terceirizadas. Com essa reforma e com a automação, categorias profissionais inteiras foram reduzidas pela metade, partidas. Depois, com as privatizações, outras categorias definharam.
Nos bairros populares, a chamada “igreja progressista” foi rapidamente desmantelada por um papa claramente reacionário. Ali, onde elas eram o lugar do encontro, foram substituídas por uma profusão de alternativas evangélicas, com práticas parecidas, mas, em geral, com um discurso radicalmente oposto. A teologia da libertação deu lugar à teologia da prosperidade, em que Deus é uma caderneta de poupança: você investe e ele dá retorno, aqui mesmo, na vida material, no vale de lágrimas. A Igreja Universal do Reino de Deus nasceu num barracão do subúrbio carioca, no final dos anos 1970. Menos de dez anos depois já adquiria uma rede de rádio e tevê e erguia filiais em todo o país. Muitas concorrentes seguiram esse rumo.
A esquerda “não praticante”, tanto quanto a praticante, precisa começar a pensar nisso. É coisa que demanda tempo. Ainda que os tempos sejam corridos e precisemos trocar o pneu sem parar de pedalar. É preciso pensar e fazer.
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