Resenha: Bandeira, Luiz Alberto. A segunda guerra fria: geopolítica e dimensão estratégica dos Estados Unidos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2013.

O início do ano de 2018 tem sido marcado por sinalizações de mudanças significativas no ambiente geopolítico e geoeconômico. Nos Estados Unidos o protecionismo se expande por meio de novas tarifas sobre as importações de ferro, aço e alumínio; na Rússia a corrida armamentista ganha ritmo mais intenso com a apresentação do novo arsenal bélico e nuclear do país; na China uma reforma constitucional aprova o fim de restrições para as reeleições dos presidentes; na Europa, a Inglaterra sobe o tom contra as tensões na região da Eurásia; no Oriente Médio o clima de beligerância se aprofunda com a intensificação da crise na Síria.

A velha ideologia do liberalismo internacionalizante vem perdendo espaço para o ressurgimento de um novo protecionismo nacionalista. Mais do que nunca estamos distantes dos falsos idílios da globalização integradora e mais próximos do verdadeiro realismo político à moda da Guerra Fria. Uma importante premissa sempre presente nas diretrizes da geopolitics norte-americana e da geopolitik alemã volta a ganhar centralidade na nossa conjuntura: no cenário internacional os tempos de paz são apenas tempos de preparação para a guerra, e esta pode eclodir a qualquer momento. Noutras palavras: a ideia de paz perpétua kantiana não passa de um véu a esconder a ideia de que toda paz é no fundo uma guerra fria hobbesiana.

No Brasil, essa percepção ganha corpo nas formulações teórico-históricas de Luiz Alberto Moniz Bandeira. O historiador e cientista político, infelizmente, nos deixou em fins de 2017, mas seu testemunho e suas impressões sobre a nova desordem mundial ficaram registradas em seu livro A Segunda Guerra Fria, de 2013. Nesta obra o autor se aventura pela interpretação geopolítica do mundo contemporâneo fugindo de dois vícios muito presentes na literatura brasileira sobre o tema: de um lado, o monopólio das análises geopolíticas feita nos marcos autoritários e militares da doutrina de segurança nacional; de outro lado, a dispersão das leituras geopolíticas realizadas nos marcos de certo marxismo que, com receio de ser acusado de subimperialista, acaba se constrangendo em apresentar estratégias de longo prazo para um país com o tamanho e a complexidade do Brasil.

O livro é composto por 25 capítulos. A primeira parte traz um diálogo teórico com aqueles que são considerados os principais autores do pensamento geopolítico contemporâneo. Para os não iniciados o autor faz uma boa introdução daquelas que são consideradas as duas principais hipóteses de interpretação geoestratégicas: (i) a ideia de que a estrutura dos conflitos globais pode ser melhor percebida, via de regra, quando observamos a região da Eurásia, e das fronteiras entre o Leste Europeu, o Oeste Asiático e o Grande Oriente Médio, seguindo a tese do poder territorial trabalhada em primeiro lugar pelo geopolítico inglês Mackinder, no que ficou conhecido como “Tese do Heartland”; (ii) a ideia de que a dinâmica dos conflitos globais pode ser melhor compreendida quando observamos a região entre o Atlântico e o Pacífico, seguindo, dessa vez, a tese do poder marítimo aprofundada de forma pioneira pelo geopolítico norte-americano Spykman, naquela que ficou conhecida como “Tese do Rimland”.

À luz desse instrumental o autor empreende, na segunda parte do livro, uma história dos principais conflitos geopolíticos do tempo presente, analisando os acontecimentos que desde a dissolução do bloco socialista e da desintegração soviética abalaram os países da Eurásia e convulsionaram o Oriente Médio e a África do Norte, em um cenário marcado pela tentativa de reafirmação da estratégia norte-americana de “full spectrum dominance” (dominação de espectro total), contra a presença da Rússia e da China naquelas regiões. Nesse sentido, o livro pode ser entendido como uma espécie de ponte entre a obra mais emblemática de Moniz Bandeira, Formação do Império Americano (de 2005), e seus últimos escritos apresentados em A Desordem Mundial: o Espectro da Total Dominação (de 2016).

O livro se inicia com a interpretação dos eventos da Praça Tianamen, em 1989, e termina com as análises das tensões que se desdobraram da Primavera Árabe, em 2011. Entre uma ponta e outra desfila um planetário de problemas políticos e bélicos no Iraque, no Kwait, na Argélia, na Somália, na Iugoslávia, no Afeganistão, na Sérvia, na Geórgia, na Ucrânia, Turquia, Tibete, Paquistão, na Arábia Saudita, Tunísia, Egito, Líbia, Iêmen, Bahrein, Catar, Palestina, em Israel e na Síria.

Como nota Samuel Pinheiro Guimarães no prefácio do livro: entre a luta contra a Al Qaeda e luta contra o Estado Islâmico o que se vislumbra é um início de século 21 marcado pelo retorno da barbárie, pela disputa de hegemonia entre Estados Unidos e China, entre o Ocidente capitalista desenvolvido (mas estagnado) e o Oriente capitalista subdesenvolvido (mas dinâmico).

Segundo Moniz Bandeira, o principal aspecto geoeconômico desses conflitos é a luta pelo controle de áreas produtoras de petróleo e gás, ao passo que o principal aspecto geopolítico é a luta pela manutenção da hierarquia de países no interior do atual sistema interestatal. O autor não deixa de problematizar, de forma bem documentada, as relações entre a Primavera Árabe e a avanço dos Estados Unidos na região.

O livro de Moniz Bandeira é leitura obrigatória para quem deseja compreender com mais profundidade os acontecimentos recentes em um mundo marcado, uma vez mais, pela lógica da Guerra Fria.

William Nozaki é professor de Ciência Política e Economia da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP)

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