Wolfgang Leo Maar: a contrarrevolução no Brasil
Publicado por Le Monde Diplomatique
Está em curso no Brasil um movimento contrarrevolucionário, contra a sociedade democrática. Não é um movimento contra uma “revolução”, mas um movimento em moldes “revolucionários” – revolução não é necessariamente de esquerda! – que recorre à ruptura e não exclui o uso da violência.
A contrarrevolução é preventiva: volta-se contra mudanças democráticas, pacíficas e ordeiras, representadas pelos governos eleitos do PT, que colocaram em xeque os interesses oligárquicos. É mais perene e danosa do que um golpe, por deixar em seu rastro a formação de hábitos, de práticas consolidadas na cultura do país. E como sempre lembra o ex-presidente do Uruguai José Mujica, muito mais difícil do que mudar a realidade é mudar a cultura.
Ao contrário de um discurso propagado com frequência pela grande imprensa, mas também por instituições, entre as quais alguns setores do Judiciário e da polícia, as classes perigosas e promotoras da desordem não são as dos contingentes populares e de trabalhadores, seus partidos e organizações, mas justamente aquelas classes presentes na oligarquia.
A violência da luta de classes no Brasil instala-se por meio da classe dominante. A oligarquia do capitalismo brasileiro é muito perigosa, haja vista que, por suas práticas, demonstradas agora sobejamente, faz mal à saúde, à educação, às eleições, ao emprego, à justiça, à soberania nacional, à nossa integridade física, às nossas reservas naturais, ao nosso futuro… A classe capitalista brasileira não vacila no recurso à violência quando julga que seu poder oligárquico é ameaçado por práticas democráticas e pacíficas.
Há pouco mais de uma década houve uma disputa eleitoral democrática no Brasil. A eleição conduziu ao poder novas práticas sociais que operaram uma transformação na sociedade brasileira e facultaram um progressivo despertar da consciência nacional acerca da desigualdade em largas camadas da população, e assim possibilitaram um deslocamento das condições de reprodução do poder oligárquico.
Pela visão oligárquica, colocaram-se em risco os interesses do capitalismo no país. Sob o manto de aparente estabilidade nas práticas sociopolíticas, econômicas e, sobretudo, culturais da coligação de forças nacional e internacional que a sustenta, as oligarquias têm muita resiliência, derivada de costumes erguidos em raízes firmes desde os primórdios deste país com a nome de commodities, estabelecido como colônia de exploração comercial e que evoluiu com base na mais longeva ordem social escravocrata do planeta.
O resultado é uma socialização capitalista que se pode denominar “semissociedade”: um ordenamento econômico válido para todos, chamado “mercado”, que faz as vezes de uma sociedade dotada de direitos e participação, mas só para uma restrita faixa da população. Ou seja, uma situação de enorme desigualdade econômica, social e política, apoiada em intolerância cultural e violência institucional repressiva, tudo junto e misturado com um minguado senso público e de solidariedade a conviver num extremado individualismo.
Essa situação, muito favorável à consolidação do neoliberalismo, evidencia que o que se apresenta como capitalismo no Brasil é incompatível com práticas democráticas, participativas e públicas. Justamente essas práticas democráticas constituem o alvo da contrarrevolução para estancar comportamentos sociais que questionam as barreiras que mantêm o poder restrito à “panela” dos sócios oligárquicos.
Pela primeira e única vez em nossa história, nos governos do PT, houve uma – imperdoável, donde o ódio despertado e o golpe realizado – disputa de poder real, em que se enfrentou o olhar oligárquico. As novas práticas não são ideias ou projetos, conflitos ou manifestações isoladas, mas práticas que, por serem sociais, são também políticas, econômicas, culturais, com consequências no ethos, nos hábitos que moldam o processo de reprodução da sociedade brasileira. Essas práticas implicam a configuração de novos nexos de coesão social, contraditórios em relação aos laços tradicionais, que pareciam estabilizados sob o poder dos interesses capitalistas, isto é, no seio da oligarquia nacional e suas ramificações internacionais.
Não são, de um lado, as práticas utópicas de uma esquerda revoltada, desprovida de base para ameaçar o poder, nem, de outro, as práticas de uma esquerda adaptada, que aceita o poder em vigor ao reivindicar a participação em sua gestão. Ambas dispensariam a oligarquia do recurso à contrarrevolução.
O que se tornou intolerável são práticas de esquerda que atingem o âmbito macropolítico nacional, por meio de sua articulação com micropolíticas. Estas são de inclusão pela educação, de combate à miséria, de cotas raciais e de gênero, de tolerância à diversidade, de ampliação da cobertura da saúde, de cobertura de serviços públicos, de inserção habitacional, de consultas com participação popular na elaboração de políticas, de valorização do salário mínimo, de reforço da formalização das relações no mundo do trabalho etc.
Essas novas práticas, ao ampliarem a concepção pública dos bens comuns para contemplar a totalidade da população, colocam em xeque os interesses representados no Estado oligárquico. Os beneficiários deste, mediante suas práticas sociais seculares, formularam sua própria concepção privada dos bens comuns nacionais, isto é, dos direitos que os brasileiros mereceriam usufruir. Agora se encontram atemorizados diante da existência, ainda que não consolidada e em construção, de práticas inclusivas e universalizáveis de bens comuns, apreendidos como públicos por parcela majoritária da população pobre e trabalhadora.
Essas novas práticas, de natureza democrática, denunciam que a parcela excluída por sua desigualdade de condições não nasce desigual, mas é construída em sua desigualdade na ordem do “mercado”, usurpador da sociedade dos iguais por ação do direito oligárquico. Agora esse controle oligárquico é ameaçado em sua continuidade pelas contradições sociais geradas pela produção da desigualdade.
A contrarrevolução, posta em movimento para realizar os interesses da oligarquia capitalista, precisa contrariar essas práticas democráticas. Foi assim que a oligarquia parlamentar impôs e a oligarquia jurídica chancelou o golpe, a contrarreforma trabalhista, a destruição das verbas públicas para saúde, educação, ciência, habitação etc.
No entanto, a contrarrevolução, mediante o exercício cotidiano de contrapráticas antidemocráticas, propõe-se a converter estas últimas em hábitos geradores de coesão social dirigida à sustentação da oligarquia – contrapráticas que não excluem o recurso à violência, seja ela material, simbólica ou de perda da equidade na justiça. É um caldo de cultura política protofascista.
Essas práticas antidemocráticas, porém, não conseguem se impor diretamente; exigem mediações. O melhor exemplo é a equivocada condenação do ex-presidente Lula. Ela se insere em uma semidemocracia que, erigida como “sociedade do espetáculo”, leva ao proscênio da opinião pública a “justiça” de uma pretensa política de probidade anticorrupção, enquanto, longe das vistas, a ordem do mercado continua em operação, com sua parcialidade capitalista.
A oligarquia, apesar de sua consolidada estrutura de dominação nas relações capital-trabalho, atentou ao risco de deixar de ser classe dirigente na sociedade, até porque nem sequer consegue dirigir a produção nacional. Sua condução da política nacional seria questionada pelas novas práticas de uma “revolução pacífica”, democrática e antioligárquica, inclusiva e participativa, dotada do efeito de reanimar a economia do país.
Transformações sociais envolvendo grandes contingentes populares – entre um quarto e um quinto da população – geraram novos nexos de reconhecimento mútuo e novos vínculos com as instituições e os processos sociais. Aqui se inclui a crescente consciência de direitos sociais em relação aos efeitos decorrentes da desigualdade causada pela privatização de políticas ligadas à economia especulativa e predatória dominante.
A democracia já não constitui só um ideal a ser conquistado, mas é construída por práticas realizadas em políticas públicas diversificadas e abrangentes. Não foi somente a democracia que se apresentou em sua idealidade à sociedade. Foi também a sociedade, em grandes contingentes, que se moveu em direção aos direitos, à ideia de democracia. A democracia já não é só uma ideia fora do lugar, alheia e deslocada da vida real, como eram as ideias liberais na ordem escravista, conforme expos Roberto Schwarz. Novas ligas de brasileiros, de natureza diversa e plural, misturados nas universidades, nas redes sociais, nas manifestações culturais, em ambientes de trabalho etc. vieram para ficar, porque, graças a esses contextos, os direitos – e com eles a ideia de democracia – conseguem ser praticados concretamente. No entanto, como lembrava Antonio Candido, a democracia é muito trabalhosa. Além de ser uma prática constante, demanda uma perseverante formação cultural para firmar sua própria concepção de sociedade. A perda de terreno pode ser rápida…
A oligarquia amedrontada associou-se com interesses internacionais contrários à nossa soberania que lhe permitiram somar forças para uma contrarrevolução antidemocrática de natureza preventiva. Seu objetivo é evitar que as contradições da desigualdade e da exclusão que ela própria gera continuem a se converter em força política adversa à sua continuidade. Para tanto necessita garantir a continuidade da cultura social e institucional.
Se até há pouco o Brasil se caracterizou como um Estado de direito aberto à democracia, hoje se volta a passos largos rumo a um Estado de direito oligárquico. Não se trata de um jogo de palavras; há uma mudança profunda acerca do que é Estado, sociedade e racionalidade social.
No plano oligárquico, o centro do poder soberano e público, o Estado, limita-se a ser detentor do monopólio da violência. A sociedade é “o mercado”, bastando para essa constatação acompanhar o zelo com que a grande mídia tradicional reconstrói diariamente essa pretensa identidade entre ordem econômica e sociedade. Práticas sociais, como eleições, inclusão social, direitos humanos, debates públicos, são fatores de perturbação da lógica social mercantil. “Social” significa aqui apenas um coletivo de indivíduos privados, e não uma concepção de totalidade pública. Não seria outro o motivo da famosa proclamação de Margaret Thatcher, recentemente lembrada por Geraldo Alckmin: “Isso que chamamos sociedade não existe; há somente famílias e indivíduos”. Temem uma sociedade em que a direção do todo pode ser outra, diversa e contrária àquela consolidada na socialização capitalista em vigor.
Se à mídia compete a construção de uma noção de sociedade oligárquica e de seus agentes, à justiça oligárquica cabe um papel decisivo na produção do poder de direção social. Cabe a ela evitar que os direitos universais, praticados na sociedade igualitária, contaminem o adequado funcionamento dos agentes do mercado na produção da desigualdade. Está em causa garantir a operacionalidade da socialização conforme a racionalidade imposta no sentido oligárquico.
A lei e a jurisprudência são, por si mesmas, uma concretização prática da direção legal universal a que deve se submeter a totalidade do contexto social. A rigor, ao “judicializar” o plano político, o Estado é adequado à direção necessária para a continuidade do poder nos moldes oligárquicos existentes. A não política resultante da “judicialização” é a política congelada na situação em que se encontra e desfalcada de sua própria identidade.
É muito nítido o trânsito de um “Estado de direito” democrático, embora com uma oligarquia dominante, para um semidemocrático Estado de “direito oligárquico”. Nessa reconstrução, a própria natureza do “social” é submetida a uma mudança estrutural. Os “bens comuns públicos”, que a rigor incluem participação e decisão do público, passam a ser bens comuns dotados de “publicidade”. Em substituição ao caráter público do social na sociedade, que reincide praticamente sobre esta, convertendo-a em formação viva, instala-se mediante a “publicidade” um sucedâneo dessa dimensão do que é público, agora reduzido à exposição pública do existente partilhado passivamente. É o que ocorre nas redes sociais, que parecem substituir o social, embora apenas o confirmem em seu formato vigente. Mas o “horror thatcheriano”, a sociedade, existe e é uma realidade prática, efetiva. Nela a diferença em relação aos comportamentos derivados da lógica de mercado está na ordem do dia por incluir a democracia.
A diversidade, por exemplo, impõe-se por cima dos critérios mercantis; de outra parte, a intolerância reinante no individualismo do mercado neoliberal precisa ocultar permanentemente sua afinidade com os privilégios econômicos. As interações no “mundo digital”, que pareciam restringir-se inteiramente às relações no plano de indivíduos e famílias, apenas reforçando certas posições tomadas de antemão e obstruindo seu debate real na sociedade, mais e mais convertem-se em meios a serem usados nas interações efetivamente sociais.
Apenas em sociedade os seres humanos conseguem se individualizar. Em uma ordem mercantil capitalista, quando muito são alçados à condição de vendedores, compradores ou mercadorias. Aprofundar a exposição e as práticas públicas democráticas na sociedade, em suas instituições e organizações, constitui o único antídoto à contrarrevolução antidemocrática e aos seus agentes no mercado, no parlamento, na grande imprensa e na justiça oligárquicos. Assim será possível resistir às suas imposições e ampliar as contradições que elas geram.
*Wolfgang Leo Maar é professor titular de Ética e Filosofia Política da Universidade Federal de São Carlos e pesquisador do Cenedic da FFLCH-USP.
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