Machismo e racismo aumentam o emprego doméstico
A retomada da política neoliberal após o golpe no Brasil tem aprofundado as desigualdades no mundo do trabalho. Frente a um cenário de altas taxas de desemprego as respostas obtidas até então apontam para o aumento da informalidade e, nos empregos formais, para uma maior contratação de homens brancos. Para as mulheres, o desemprego, que já era maior, segue aumentando, assim como a informalidade e o trabalho precário. Uma das consequências mais visíveis desse movimento é o aumento do número de mulheres no emprego doméstico, que vinha caindo durante a última década.
Nos últimos três anos o país ganhou mais de 204 mil pessoas no emprego doméstico, segundo a Pesquisa Nacional de Amostra por Domicílios (PNAD 2017). Essa é a categoria que mais emprega mulheres no Brasil, totalizando cerca de 7 milhões, o que faz o país ter o maior número de empregadas domésticas do mundo: são três para cada 100 habitantes. O perfil destas trabalhadoras é conhecido: na grande maioria mulheres, negras, de baixa escolaridade.
Moradoras das periferias desse país, suas histórias de vida costumam ter vários pontos em comum: são mulheres que precisaram ultrapassar sérias barreiras de preconceito, discriminação e assédio no trabalho. São chefes de família que esperam que seus filhos tenham mais oportunidades do que elas tiveram e que passam suas vidas cuidando das casas, crianças e idosos de outras famílias, muitas vezes sem tempo suficiente para cuidarem de suas próprias casas e famílias.
Ao debatermos sobre essa ocupação é comum apontarmos assertivamente sobre a precariedade na qual ela é exercida. Contudo, também não podemos naturalizar que sempre existam mulheres negras que tenham que fazer um trabalho que deveria ser compartilhado com toda sociedade e que poderia ser substituído por outros tipos de trabalho. Isso, longe de significar um repúdio ao emprego doméstico, é um repúdio à naturalização de relações historicamente racistas e machistas que marcam a presença dessa ocupação em tamanha quantidade em nosso país. Tampouco ao apontar questões ao enorme número de empregadas domésticas no Brasil defendemos que essas mulheres não participem do mercado de trabalho. Pelo contrário, propomos a construção de ações que tenham como base a premissa de que essas mulheres devem ter o direito de se inserir no mercado de trabalho também em outras ocupações, que mais lhe realizem, e com maior proteção social.
Por conta da ausência do Estado em políticas e equipamentos públicos de cuidados com crianças, doentes e idosos, do não compartilhamento dessas tarefas por parte dos homens, e da estrutura patriarcal e racista ainda presente em nossa sociedade, o trabalho doméstico acaba por ser responsabilidade quase que exclusiva das mulheres.
Para resolver essa questão são três os principais arranjos que elas lançam mão. Muitas acabam por acumular as duas jornadas de trabalho, dentro e fora de casa, o que gera impactos na sua vida profissional, por muitas vezes precisarem optar por empregos de menor qualidade, com menores salários e jornadas reduzidas ou flexíveis, porém, mais perto de suas moradias e com maior possibilidade de cuidar dos filhos.
Um segundo arranjo, a depender das condições econômicas, é feito por algumas famílias, especialmente as compostas por mulheres brancas de classe média e alta, que acabam por contratar outra mulher para dar conta das tarefas domésticas e aquela primeira seguir prioritariamente com seu emprego remunerado. Nesse caso, o que era um trabalho doméstico não remunerado feito pela própria mulher dentro de sua casa, acaba por assumir a forma de um emprego doméstico, e será realizado por mulheres contratadas informalmente em 69% das vezes, com salários abaixo do mínimo, com média nacional de R$852,00, precárias condições de trabalho, longas jornadas diárias e que dificilmente conseguirão ter direito à aposentadoria.
Outras vezes, esse trabalho será realizado também por uma mulher, mas que acabará dedicando-se integralmente a ele, em sua própria casa, sem possibilidades de construção de renda própria e, consequentemente, tendo a construção de sua autonomia econômica bastante prejudicada.
Em um cenário de retorno das políticas neoliberais, de escancaramento do racismo e do machismo, mudanças nessa realidade parecem longe de serem alcançadas. Mas, são pautas históricas de movimentos que lutam por uma sociedade menos desigual, que compreendem que para isso mudanças no mundo do trabalho são determinantes, e assim, a luta pela divisão do trabalho doméstico e de cuidados é parte inerente.
Do mesmo modo, dar visibilidade a esta categoria, ouvir as demandas dessas trabalhadoras, compreender suas necessidades imediatas e seus sonhos de vida são tarefas inescusáveis para quem se propuser a dialogar com as periferias de nosso país. São elas que sentiram a diferença que a valorização do salário mínimo proporcionou a suas vidas, que olham para suas famílias e sabem a importância que podem ter políticas públicas como as cotas nas universidades ou da presença de médicos em localidades até então invisíveis nos mapas da saúde pública. Mas, sobretudo, são também essas mulheres que diariamente criam e recriam resistências – individuais e coletivas – à ausência do Estado em seus locais de moradia, à violência estrutural e institucional da sociedade, ao racismo e ao machismo.
Léa Marques, consultora do projeto Reconexão Periferias