O filho de Canudos é conduzido a Porto Alegre
“Do ventre fecundo das filhas do povo,
das cinzas dos ranchos, da terra queimada, das marchas, das greves, das ruas feridas, nascerão seus julgadores.”
Independente do resultado da farsa que se monta em Porto Alegre, neste 24 de janeiro de 2018, as esquerdas brasileiras devem se preparar – na perspectiva de uma resistência de longo prazo – para jornadas de desobediência civil contra um Judiciário que se arvora em poder tutelar sobre os demais poderes e sobre a sociedade.
O que ocorrerá ali? Porto Alegre será cenário de um teatro de sombras supostamente judicial. O TRF 4 examinará o recurso contra a sentença do juiz de primeira instância que proferiu a condenação de um ex-presidente da República, ignorando a acusação inicial apresentada pelo Ministério Público. No final do processo, ao exarar a sentença, formulou outra denúncia a partir de um inédito “ato de ofício indeterminado”, ou seja, sem prova material. Num único gesto, o juiz expôs a incompetência do Ministério Público para comprovar a denúncia que apresentou e assumiu para si a atribuição de acusador. O que seria suficiente num país com menor vocação para o circo, para anular o processo.
Esse processo expôs a fragilidade de uma importante instituição do Estado Democrático de Direito moderno, o Ministério Público Federal, capturado por um estamento privilegiado, regiamente pago, que se põe frequentemente a serviço de seus próprios interesses corporativos em lugar de defender a sociedade, como define a Carta de 88. O plano inclinado em que resvalaram os procuradores que atuam no processo para impedir a candidatura de Lula a presidente, liderados pelas convicções de Dallagnol – uma espécie de Bolsonaro envernizado – indica a necessidade de debater a sério a partidarização do Ministério Público e o controle social de suas funções.
Aos poucos vai se desenhando, neste país surreal, uma inversão surpreendente: o acusado e sentenciado sem provas materiais – não há prova porque não há crime – ergue um espelho diante dos olhos do país e do mundo onde se reflete a imagem obscena do Poder Judiciário brasileiro despido de sua toga, e exposto em sua lamentável e mesquinha verdade: mero instrumento nas mãos dos herdeiros dos senhores de escravos, constituídos numa plutocracia que não hesita em violar o Estado Democrático de Direito quando ele se revela disfuncional na defesa dos seus privilégios de classe.
A hipertrofia do Judiciário brasileiro põe em cheque as bases de sustentação do sistema democrático estabelecido pela Carta de 1988: a soberania popular e o equilíbrio entre os poderes. Ao chancelar e conduzir formalmente o processo que resultou no impedimento da presidenta eleita Dilma Rousseff, sem crime de responsabilidade, o Judiciário se tornou cúmplice de um golpe de estado que violou a vontade das urnas, portanto, violou a soberania popular; ao invadir repetidas vezes as atribuições do Legislativo e do Executivo – por exemplo a nomeação de ministros pelo titular da presidência da República –, o Judiciário brasileiro destruiu o equilíbrio entre as instituições que dirigem o país e submeteu ao seu critério precisamente os poderes cuja origem e legitimidade derivam do voto popular.
Cabe perguntar: quem nomearia os ministros do presidente Lula, se vier a vencer o cerco e a caçada que lhe move o Judiciário brasileiro, e ainda assim for eleito? O Gilmar Mendes? A firmeza e a tenacidade do mais importante líder popular que as lutas dos trabalhadores produziram acabou por engendrar uma situação pouco usual, aqui e em outras latitudes: Lula, o réu, arrasta consigo para o cadafalso que armaram em Porto Alegre o próprio Judiciário que o julga.
Há um desafio posto para as esquerdas brasileiras, para encarar um novo momento das lutas de classes que se abriu com o golpe de 2016. Incluir em suas táticas de resistência, num país onde a cultura herdada da escravidão não permite questionar um Juiz, ainda que ele se apresente empunhando um fuzil apontado para o espectador da foto, jornadas de desobediência civil.
O filho de Canudos resistiu ao massacre e será conduzido a Porto Alegre. Não irá acorrentado como desejariam alguns. Ele encarna milhões. 120 anos depois, neste país que desafia a compreensão e a lógica, os filhos de Canudos renasceram e se multiplicaram para nos repetir, utilizando a palavra majestosa de Euclides da Cunha: “Canudos não se rendeu. Exemplo único na História, resistiu até o esgotamento completo. Expugnando palmo a palmo na precisão integral do termo, caiu no dia 5 ao entardecer quando caíram seus últimos defensores, que todos morreram. Eram quatro apenas: um velho, dois homens feitos e uma criança na frente dos quais rugiam, raivosamente cinco mil soldados”.
O aparato montado pelas forças repressivas para impedir o direito de livre manifestação popular não será suficiente para apagar a presenças dos herdeiros de Canudos. Depois de 25 de janeiro: Caravanas.
*Pedro Tierra é poeta. Ex-presidente da Fundação Perseu Abramo.
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