Pedro Tierra analisa ofensiva obscurantista: sobre obscenidades
Onde quer que se queimem livros, terminarão um dia por queimar pessoas”. Heinrich Ibsen.
Poderia iniciar este comentário expondo o sentimento de indignação ao lado de setores da sociedade brasileira que prezam a liberdade e a democracia diante da ofensiva obscurantista que se abriu contra exposições em museus e outras manifestações culturais, sob a alegação de obscenidade e indução à pedofilia. Razões que, supõe-se, atendem a objetivos de natureza moral. A ofensiva avança nesses dias mais um degrau, com a censura à apresentação de um dos mais importantes artistas brasileiros, o cantor e compositor Caetano Veloso que seria oferecida à grande ocupação do MTST em S. Bernardo do Campo, em sua luta pelo direito à moradia digna, anunciada para a noite de 30 de outubro, e impedida pela justiça. Agora sob o pretexto de insegurança. Em pouco tempo a liberdade de expressão e criação artística garantida pela Constituição se tornará mero pretexto para medidas de força.
O Brasil, sob a nefasta figura de Michel Temer, despediu-se de qualquer aspiração ser um país inteligível. Tudo ocorre como se estivéssemos vivendo um pesadelo coletivo, sem roteiro e sem propósito. O país foi mergulhado no irracionalismo que tudo relativiza exceto o uso da força. Simbólica ou física. E do embuste produzido em escala industrial pelo cartel da mídia conservadora. A semente do fascismo está plantada em terreno fértil: o terreno da indiferença. E a sociedade brasileira – seus setores democráticos – deve se preparar para a conhecida advertência de Ibsen com que abri essa reflexão.
Mas, prefiro conduzir meu argumento a partir de outro olhar: a Sessão de 17 de abril de 2016, comandada por Eduardo Cunha, gerente distribuidor – em dinheiro vivo, por favor! – de milhões de reais vindos dos cofres dos açougueiros da JBS para comprar votos de parlamentares e aprovar o impedimento da Presidente eleita, Dilma Rousseff, sem que se provasse contra ela crime de responsabilidade ou de qualquer outra natureza. Todos nos recordamos com repugnância, tratou-se de uma sessão obscena, ante uma sociedade anestesiada.
Os depoimentos publicados desde então, oferecidos pelos delatores participantes da compra dos votos necessários para concretizar o impedimento criminoso de Dilma Rousseff esclarecem a população sobre os mecanismos e valores das operações de compra e venda. Não chega a gerar espanto o silêncio do STF diante da obscenidade exposta. A Suprema Corte presidiu a Sessão. Quando um dia recuperarmos a democracia, ela – a Sessão – será anulada em nome do respeito à soberania popular.
Nos últimos dias esse pesadelo que atormenta a sociedade brasileira teve confirmada – diga-se, duplamente – aquela Sessão pelo arquivamento das denúncias apresentadas pelo Ministério Público Federal contra o usurpador Michel Temer. Agora o expediente utilizado, fartamente documentado pela mídia, foi a cooptação por meio da liberação de recursos de emendas parlamentares, oferecimento de cargos ou a publicação de mecanismos institucionais como a famigerada Portaria 1.129/17 do Ministério do Trabalho que abre as portas para a legalização da exploração do trabalho escravo no país. Na prática a portaria de Temer revoga a Lei Áurea que, há 129 anos imprimia um ponto final à escravidão legal de afrodescendentes no Brasil.
Há mais de um ano, o Estado brasileiro expõe diante do mundo as vísceras de uma quadrilha empenhada – em nome dos interesses de uma elite retrógrada e desprovida de compromisso com o país – na destruição de qualquer hipótese desenvolvimento autônomo do Brasil e na restauração dos mais selvagens métodos de exploração dos trabalhadores, como atestam a dita Reforma trabalhista e a liquidação da Previdência Social. Hoje estão sendo perpetrados, quotidianamente, crimes de lesa-pátria pelos próprios agentes do Estado que deveriam protege-la da pilhagem.
A cultura política do Brasil nos conduziu a um paradoxo: os setores populares, teoricamente, atores e destinatários do processo civilizatório do país foram secularmente hegemonizados por uma concepção que atribui às oligarquias a propriedade exclusiva dos assuntos do Estado. Este fato cultural nos ajuda a compreender alguns processos históricos como o Movimento Abolicionista que contou com o claro predomínio de militantes brancos – mesmo porque aos escravos não era permitido sequer alfabetizar-se – e se consumou com um ato assinado pela própria filha do Imperador. Ou a Proclamação da República diante dos olhos bestificados da sociedade, resultante de um movimento de militares conduzido por Deodoro, um monarquista… Os mais tímidos ensaios de participação popular nos assuntos de governo foram rechaçados de plano pelo sistema oligárquico, para prevenir que pelo exercício da cidadania, o aprendizado democrático produzisse entre os subalternos veleidades de consciência republicana.
As elites conservadoras conduzem, utilizando-se de uma camarilha desprovida de escrúpulos, um processo que busca produzir conscientemente as condições da ingovernabilidade do país: a afirmação do Judiciário como um poder tutelar sobre os demais poderes da república; o desequilíbrio entre os poderes; o controle monopolista dos meios de comunicação; e modelam os contornos de um estado policial como forma de produzir o medo em escala de massa para perpetuar seu domínio sobre a sociedade brasileira.
Em qualquer democracia no mundo a gangue de rua que acendeu o estopim daquela ofensiva contra a exposição no espaço cultural de um banco espanhol, em Porto Alegre, seria alvo da atenção da polícia. Mas, como vivemos “ tempos excepcionais” e fomos instruídos pelos juízes de primeira instância que “ tempos excepcionais exigem métodos excepcionais”, os mecanismos que asseguram o direito à informação e à fruição cultural são postos de lado. Aos cidadãos resta – quando muito – protestar contra a censura, quando a censura já se converte em regra, naturalizada como parte da paisagem.
Esse retorno às práticas medievais de combate à criação artística estão associados aos períodos de ascensão e predomínio das concepções mais autoritárias e truculentas na história, como o nazismo e os diferentes perfis com que o fascismo se apresentou e contemporaneamente se apresenta. Tais expedientes são utilizados para entreter a sociedade enquanto se cometem sucessivos crimes de lesa-pátria nos escaninhos do Congresso Nacional ou nos leilões promovidos por um Executivo sem legitimidade para oferecer na bacia das almas as riquezas do país e a soberania nacional.
A conhecida exposição organizada por Alfred Rosenberg em 1937, na Alemanha de Hitler, para exibir a partir de Munique a “Arte degenerada”, como ele definira dez anos antes o expressionismo e o modernismo europeu – Edward Munch, Picasso, Kandinsky, Kathe Kollwtiz, Paul Klee… entre outros – para contrapor a ela o virtuoso e convencional realismo alemão, recebeu a visitação de mais dois milhões de cidadãos. Aqui nos trópicos – tristes trópicos – a ofensiva da censura contra a criação artística é alimentada por parte de quem sequer frequenta museus…
“Se os governadores não construírem escolas, em 20 anos faltará dinheiro para construir presídios”. Poucas vezes a afirmação de um intelectual e líder político brasileiro – Darcy Ribeiro – revelou-se tão tragicamente profética. As bases materiais para a colossal calamidade que vivemos no país hoje vieram sendo construídas pelo investimento insuficiente e pelo não-investimento – atentem para a Emenda Constitucional que congela os gastos por vinte anos – como política de estado para nos manter ajoelhados diante do altar do obscurantismo e da ignorância.
O extrato mais rico do Brasil, que nunca acreditou no país como nação, neste momento se empenha em destruir as poucas possibilidades experimentadas de combate às desigualdades sociais criminosas que nos marcam como o caráter mais duradouro desde o desembarque dos portugueses. A base da pirâmide social, os assalariados, mais uma vez será chamada para despedir-se da indiferença, reocupar o espaço privativo da política, redesenhar e, agora, reconduzir um processo que possa resgatar o destino deste país como nação…
*Pedro Tierra é poeta. Ex-Presidente da Fundação Perseu Abramo.
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