Enquanto no Brasil a austeridade fiscal continua sendo defendida como único mantra capaz de restaurar a confiança do mercado e assim nos retirar do inferno econômico em que estamos atolados, no resto do mundo vai ficando cada vez mais evidente que não só a estratégia de corte de gastos públicos é contraproducente, como na verdade é preciso agir no sentido oposto, isto é, ampliando as despesas do setor governamental, preferencialmente em um movimento coordenado entre as principais economias do mundo.

Essa é, pelo menos, a tônica do competente relatório anual que a Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (Unctad)  divulgou na semana passada e que já em seu título proclama sem meias palavras a necessidade de “Um New Deal mundial como alternativa à austeridade” (leia aqui a versão resumida, em espanhol). Para os autores do documento, não tem “perhaps”. Passados dez anos da crise financeira que lançou o mundo na estagnação, consta-se – tardia e empiricamente – o que a história e os economistas dos anos 1930 já deram óbvias e fartas lições: A austeridade fiscal, proclamada como quintessência da virtude macroeconômica, apenas fez agravar o quadro de incerteza e de anemia da demanda agregada, deprimindo o nível de atividade, agravando o desemprego, degradando as condições de vida da população e debilitando ainda mais a capacidade de financiamento do setor público (uai?).

Fossem os governos orientados por alguma sensatez macroeconômica e por responsabilidade política, certamente não teria sido necessário passar por todo esse perrengue para que se dessem conta de que deste jeito não sairemos do pântano. Entretanto, como nas últimas décadas a política foi devorada pelos interesses dos grandes conglomerados financeiros, pela enésima vez na história o facão nos gastos públicos foi defendido como solução milagreira – curiosamente, contudo, desta feita o arrocho fiscal foi acompanhado de uma inédita disenteria monetária (quantitative easing), a qual irrigou com trilhões de dólares os mercados financeiros, em benefício exclusivo de uma escassa e poderosa classe rentista.

Mas, pelo menos agora, surgem contundentes manifestações de mea-culpa, algumas acompanhadas de proposições bastante assertivas rumo a uma recuperação. Na verdade, nos últimos anos o Fundo Monetário Internacional (FMI) já vinha alertando em seus relatórios para a necessidade de se relaxarem as políticas de austeridade. O documento da Unctad, entretanto, vai bem mais além. Parte de uma devastadora crítica do que chama de “hiperglobalização”, caracterizada por um “rentismo endêmico” que, por um lado, se sustenta na extroversão dos capitais especulativos e em grandes oportunidades de captura de rendas obtidas por meio dos processos de privatização e, por outro lado, entrega inéditos níveis de desigualdade e incerteza, “ameaçando de forma perigosa a saúde política, social e ambiental do planeta”.
E para escapar do cerco armado pela supremacia rentista e sua insensata dieta fiscal, a Unctad assinala em tom de alerta: “se não se realizarem esforços significativos, sustentados e coordenados para reativar a demanda mundial mediante um aumento dos salários e do gasto público, a economia mundial se verá condenada a seguir crescendo lentamente, ou algo pior”. Entre as principais medidas recomendadas, estão: 1) fim imediato da austeridade; 2) aumento dos investimentos públicos, em especial os de dimensão assistencial; 3) ampliar as receitas públicas, com maior peso de tributos progressivos; 4) fortalecer o movimento sindical; 5) domar o capital financeiro; 6) frear o rentismo das empresas, 7) proteger o espaço das políticas nacionais frente às pressões dos investidores estrangeiros.

Como se fosse pouco, em um tom político não usual para um organismo multilateral, o documento da Unctad ainda afirma: “em muitos aspectos, a conjuntura atual é propícia para uma agenda transformadora deste tipo. A ordem estabelecida está sob ataque de ambos os extremos do espectro ideológico e sua legitimidade é questionada por uma parte cada vez maior a opinião pública”.
Excelente! No mínimo é um importante ponto de partida para se pensar as bases de uma nova concertação internacional e, por que não, para a construção de uma agenda política do campo progressista para a eleição brasileira que se aproxima.

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