Gustavo Bernardes: censura ao Queermuseu, o golpe na cultura
Por Gustavo Bernardes
Quando meu amigo Gaudêncio Fidelis, renomado curador brasileiro, me disse que estava organizando uma exposição chamada Queermuseu – Cartografias da Diferença na Arte Brasileira no Santander Cultural, em Porto Alegre, fiquei curioso e ao mesmo tempo fascinado. Seria a primeira vez que um grande centro cultural do Rio Grande do Sul receberia uma exposição de diversos artistas abordando a temática da diversidade sexual, da identidade e expressão de gênero e da convivência com o outro, com o “diferente”. Lembro-me que depois, como militante LGBT que sou, comemorei com ele: o museu será nosso!
Mas, passada a fase da euforia, enquanto pensava na exposição em casa, não pude deixar de lembrar da exposição The Perfect Moment, de Robert Mapplethorpe, que agitou os Estados Unidos no final da década de 1980. O fotógrafo norte-americano ganhou notoriedade por fotografar o ambiente gay underground, e sua exposição estava agendada para várias galerias. As galerias por onde passaria a exposição foram pressionadas por congressistas conservadores e líderes religiosos, e uma batalha judicial foi travada. Muitas galerias cederam à pressão e cancelaram a exposição de Mapplethorpe. Seria o Queermuseu vítima dessa mesma pressão conservadora? Seríamos capazes de resistir, sendo que a exposição ocorreria dentro de um centro cultural privado com interesses comerciais? A resposta não demorou a vir.
A inauguração da exposição foi um tremendo sucesso, cerca de três mil pessoas compareceram, o clima era de festa e confraternização entre pessoas que pareciam esperar por aquele momento, que parecia sinalizar que ainda vivíamos numa democracia. Tomamos vinho, fotografamos obras livremente para depois compartilhar com nossos amigos de outros estados nas redes sociais, também curiosos e felizes por uma exposição ousada como a arte deve ser. Para nossa surpresa a única manifestação durante a inauguração foi de um grupo de esquerda que denunciava o desmonte da política de Aids no Rio Grande do Sul e em Porto Alegre. Todo o evento foi bem organizado, e as obras selecionadas de artistas como Adriana Varejão, Cândido Portinari, Fernando Baril, Guignard, Lygia Clark, Kika Costa, Milton Kurtz, Mário Röhnelt, Paulo Osir, Sandro Ka e Leonilson, estavam em sintonia com a proposta do curador.
Mas a reação da extrema direita não demorou a vir. Nas últimas semanas, membros do MBL passaram a agredir artistas, filmavam e ofendiam visitantes da exposição chamando os visitantes de pedófilos. Os constrangimentos não se limitaram aos visitantes, as palestras promovidas pelo Santander Cultural começaram a ser ocupadas por membros do MBL que ofendiam e vociferavam contra a arte e a exposição. Organizaram uma rede nacional de pessoas do Rio de Janeiro, Paraná, Paraíba e Pernambuco que passaram a enviar mensagens nas redes sociais do Santander Cultural dizendo que a exposição era um estímulo a pedofilia e a zoofilia sendo que essas pessoas jamais estiveram na exposição.
Por fim, ontem (10/09), o Santander Cultural sucumbiu à pressão fascista e cancelou a exposição. Não houve tempo para uma reação dos setores progressistas. Com a desistência do Santander de resistir à pressão dos grupos de extrema-direita, corremos o risco de não fazer o debate ocorrido nos EUA quando da tentativa de censura da exposição The Perfect Moment. Lá, as questões que se colocaram foram: a quem cabe decidir o que é obsceno ou ofensivo nas exposições? Se a arte se inclui na liberdade de expressão, com que direito, um grupo se dá ao direito de decidir o que é “obsceno” e “pornográfico”? Quem determina o que é arte e o que pode ou não ser visto?
A arte provoca reflexão e crítica, por isso ela incomoda tanto os conservadores. Cabe à esquerda e aos setores progressistas da sociedade assumir a luta pela liberdade de expressão, que é tão importante quanto a luta por igualdade. Não interditemos o debate, nós militantes sociais vamos à luta pela nossa liberdade. O pecado está mais na cabeça de quem vê do que numa obra de arte.