O cenário é simples: uma mesa com toalha de renda, xícaras de café, um caderninho de anotações. Durante duas horas, a artista do Rio Grande Norte, Luana Cavalcante, senta-se e escuta as histórias da convidada da vez. A partir das lembranças de infância, dos ícones e símbolos evocados, ela compõe um desenho exclusivo. Do papel para a pele, o croqui ganha vida, contorno, formas no corpo feminino.

Esse é o projeto “O ser de Luana”, uma iniciativa sensível e poética que têm como intuito aproximar as mulheres de seus corpos e trajetórias. Conheça mais sobre o processo criativo de Luana Cavalcante nessa entrevista exclusiva.

Luiza: Você é designer e trabalhou muito tempo com editoração. Qual foi o processo da designer até a Luana “artista”, do ser de Luana?

Luana: Na verdade, essa Luana já existia desde que eu nasci. Eu sempre desenhei. Meu pai é artista plástico, então, ele sempre me influenciou a desenhar. Tudo o que eu fazia ele guardava: ele tem todos os meus desenhos. Sempre que eu vou pra casa do meu pai, eu fico olhando. Eu estava analisando os desenhos e tem muito corpo de mulher. Então algo já dizia que eu ia fazer isso, mas eu nunca objetivei isso. Eu sempre deixei que a vida fosse me levando. Eu comecei a entrar na publicidade como designer, porque meu pai tinha uma gráfica e eu sempre fiz artes gráficas. Quando eu vi eu estava ali dentro, trabalhando em agência. Não foi uma coisa que eu disse “eu vou ser isso, eu vou fazer isso”. Foi bem natural. Eu sempre tive resistência em querer ser artistas. Eu sempre desenhei pra mim. Eu nunca mostrava pra ninguém. Eu tinha muitos desenhos. Qualquer lugar que eu estava, estava desenhando. Eu nasci pra ser artistas, mas eu não queria ser artista, porque tem a realidade do meu pai, que sempre dizia “você tem que ter outra coisa, a arte é só uma válvula de escape: não vai te sustentar, mas vai lhe trazer felicidade”. Eu entrei pra publicidade e sempre nos meus trabalhos como designer, eu tinha uma vertente mais artística. Mas eu era sempre barrada, me podava muito a publicidade e eu comecei a ficar muito frustrada. Foi quando eu comecei a estudar em casa, estudar o meu corpo, comecei a me pintar. Eu tinha muita vontade de me pintar. Comecei a fazer trabalho de autorretrato, o tempo inteiro. Eu já tinha quase 12 ensaios meus: eu pinto de frente pro espelho, gravo, pra poder estudar minha técnica no corpo. Quando eu vi, eu já estava pintando outras meninas. Comecei totalmente despretensiosa, postando nas redes sociais (obviamente com a permissão delas). Aí eu criei uma hashtag chamada “o ser de Luana”, que era como eu via o meu olhar sobre aquela mulher. Quando eu vi estava todo mundo escrevendo pra mim “eu quero ser de Luana, eu quero ser de Luana”, e eu não parei mais, até agora.

Do papel para a pele: entrevista com a artista Luana Cavalcante

Fernanda : Quando você começou?

Luana: Em outubro, a pintar outras mulheres, mas o estudo começou em 2012.

Luiza: As pinturas são sempre criadas a partir das histórias contada pelas mulheres. O que mais te surpreende e mais te instiga nessa escuta?

Luana: O que mais me instiga é eu querer entender o universo das mulheres, porque eu cresci numa realidade em que a mulher é muito limitada. Quando eu era criança, eu estava sentada e eu vi a minha vagina, fiquei olhando, e minha mãe gritou de longe “não mexe aí, não mexa”. Então, comecei a querer fazer coisas pra sentir que meu corpo era meu, porque sempre alguém dizia que não era. Quando eu comecei a morar só, comecei a me olhar no espelho muito, me tocar e começar “isso é meu, isso é meu”. Eu comecei a me amar, “eu posso fazer o que eu quiser, eu sou dona do meu corpo”. Eu comecei a sentir uma felicidade tão grande que eu pensei “meu Deus, eu não posso guardar isso só pra mim. Eu preciso que outras mulheres sintam isso, sintam o poder que você tem, do seu corpo, de si mesma. Sentir que você é feliz do jeito que você é”. Então quando eu fico ouvindo as histórias das mulheres, vai acrescentando muita percepção de vida pra mim também, vai enriquecendo meu olhar como mulher também. Eu vejo como as questões das mulheres são muito parecidas, ouvindo todas as histórias até hoje, eu vejo como são muito parecidas, os abusos, a violência: as mulheres todas passam por isso (e eu já passei por isso também). Eu sempre me vitimizei (“porque eu passo por isso”), eu comecei a sentir que eu tenho que dizer “isso está errado”; e quando eu ouço as mulheres falando isso, eu sempre falo o que eu sinto, “você não pode passar por isso”. Eu gosto de conversar com as mulheres e ver que eu posso ajudar de alguma forma, com o meu olhar.

Fernanda: Você tem uma formação feminista?

Luana: Eu não tenho rótulos. Eu me inclino pro lado feminista. Eu cresci numa realidade machista. Minha vó sempre dizia “casa que tem mulher, homem não faz nada”. Eu cresci nisso: numa casa com muitos homens, eu tinha que lavar louça, arrumar a casa, e eles ficavam só olhando “traga isso, traga água”.- mulher tinha que servir. Eu nunca fui de acordo com isso. Desde criança, eu fui indignada com isso. Eu sempre fui a estranha, a pessoa que se indignava com as coisas que eram comuns, eram naturais pra aquela realidade (pra cabeça da minha vó, dos meus primos, do meu pai, dos meus tios). Eu bati o pé. Muito gente achava que eu era doida, “como assim você tá pensando diferente da gente”. Eu sempre fui muito revoltada com essas questões, mas nunca de dizer eu sou feminista. As pessoas sempre falaram isso pra mim e hoje, quando os homens vêm o meu trabalho, eles têm muito medo de mim, com o que estou fazendo com as mulheres. Eu acho que estou contribuindo de alguma formam para aquelas mulheres que já conversei, já pintei. Eu fiz uma análise nas redes sociais e eu vi que 70% dos acessos são de homens, mas 80% das curtidas são de mulheres; então, os homens olham e não reagem de nenhuma forma, estão olhando o que está acontecendo ali, o que está ela está fazendo. E os homens falam “você é feminista”. Todos os homens já têm um rótulo sobre mim que eu sou feminista, mas eu não quero ter rótulo. Eu sou Luana e estou fazendo esse trabalho.

Do papel para a pele: entrevista com a artista Luana Cavalcante

Fernanda: Quando você fala com as mulheres pra montar a pintura, você escolhe essas mulheres por algum critério (mulheres da periferia, mulheres que sofreram violência, etc) ou elas simplesmente aparecem?

Luana: Eu quero fazer com todas as mulheres. Quando eu comecei, eu fazia com pessoas mais próximas. Foi o raio de propagação que meu trabalho começou a atingir. As pessoas começaram a falar “eu quero, mas você só faz no estereótipo de mulher assim, assim”. Não. Eu quero fazer com todos os tipos de mulher. Então, eu comecei a ver pessoas diferentes: senhoras de idade foram fazer, crianças, mulheres gordas, magras, negras, ruivas, loiras. Eu comecei a encher de felicidade, porque é isso que eu quero. Eu não quero limitar. Eu quero que seja ilimitado meu alcance, que todas mulheres sintam que possam.

Fernanda: Entre essas oitenta, o que você acha que é similar entre as pinturas e as coisas que você ouviu?

Luana: A coragem. O interessante é o que fez elas despertarem, querer estarem ali, com seus corpos expostos, contando sua história através do corpo. O que tem em comum é essa iniciativa, de dizer eu quero, me procurar e dizer que quer ser tela, ser obra de arte. No final, a felicidade é diferente. Tem gente que sai em êxtase, que fica em casa pensando no que fez.

Fernanda: Teve quem quis ir embora pintada?

Luana: Várias, várias. Uma delas foi embora pintada pra mostrar pro marido. Aí acabou tendo um filho. Ela foi a primeira menina que eu pintei e ela acabou de ter (faz nove meses exatamente que estou fazendo isso). Eu fiz ela, depois, com seis meses. Agora vou fazer ela com o bebe. E já aconteceram vários casos de mulheres que marcaram comigo e, no dia falar assim, “eu não posso ir não, meu marido não deixou, meu namorado não deixou, porque ele não quer que exponha meu corpo”. Aí eu “ah, tudo bem”, eu respeito, eu não falo nada. Já teve namorado que, no dia dos namorados, pagou (“eu vou dar de presente pra minha namorada, ela vai aí”). Ele foi com ela, acompanhou, e eu fiz. Esse daí eu não posto porque é uma coisa deles. Tem muitos casos assim, de pessoas que se presenteiam pra elas mesmas (fazer uma quadro, deixar no quarto).

Do papel para a pele: entrevista com a artista Luana Cavalcante