Ponciá Vicêncio: as marcas da escravidão no Brasil
Em “Ponciá Vicêncio”, Conceição Evaristo retrata a vida de uma menina-mulher negra, descendente de escravos, cuja família ainda vive nas terras do/próximas a seus antigos senhores e dos quais inclusive carregam o sobrenome. “O tempo passou deixando a marca daqueles que se fizeram donos das terras e dos homens”, diz a autora.
O livro retrata a realidade da abolição da escravatura no Brasil, realizada sem nenhum tipo de compensação para os ex-escravos e com a manutenção de diversas relações serviçais. O livro ainda trata da grilagem dos ex-senhores em cima das terras dos negros e como os brancos se aproveitam do fato de os negros não saberem ler. Tal herança é presente ainda nos dias de hoje, não no livro de Conceição Evaristo, mas na vida real.
Para se libertar da vida da servidão no campo, a menina Ponciá decide tentar a vida na cidade:
“Quando Ponciá Vicêncio resolveu sair do povoado onde nascera, a decisão chegou forte e repentina. Estava cansada de tudo ali. De trabalhar com o barro com a mãe, de ir e vir às terras dos brancos e voltar de mãos vazias. De ver as terras dos negros cobertas de plantações, cuidadas pelas mulheres e crianças, pois os homens gastavam a vida trabalhando nas terras dos senhores, e depois a maior parte das colheitas ser entregue aos coronéis. Cansada da luta insana, sem glória, a que todos se entregavam para amanhecer cada dia mais pobres, enquanto alguns conseguiam enriquecer a todos os dias. Ela acreditava que poderia traçar outros caminhos, inventar uma vida nova” (:30).
Na cidade, a realidade da pobreza, da solidão, da violência e da falta de sentido mostram que Ponciá não consegue se libertar do passado, representado pelo avô que trazia em si a angústia de ser escravo, o que o levou à loucura. Na linha do que ocorreu com o avô, Ponciá afirma que era bom mesmo que todos os seus filhos tivessem morrido ainda bebês, para não terem a mesma sorte das crianças que conhece em seu entorno, que viviam na miséria, pois
“A vida escrava continuava até os dias de hoje. Sim, ela era escrava também. Escrava de uma condição de vida que se repetia. Escrava do desespero, da falta de esperança, da impossibilidade de travar novas batalhas, de organizar novos quilombos, de inventar outra e nova vida” (:72).
Outro personagem importante é Luandi, irmão de Ponciá, cujo ideal é ser soldado para “mandar. Prender. Bater. Queria ter a voz alta e forte como a dos brancos”. Luandi fica na dúvida caso houvesse uma guerra entre pretos e brancos ou entre ricos e pobres: “Se tivesse uma guerra dessas, de que lado ficaria?” Mas o Luandi sedento por ter voz de mando recebe um alerta da sábia Nêngua Kainda: “Se a voz de Luandi não fosse o eco encompridado de outras vozes-irmãs sofridas, a fala dele nem no deserto cairia. Poderia sim, ser peia, areia nos olhos dele, chicote que ele levantaria contra os corpos dos seus”…
O texto, ainda que ficção, traz uma poderosa reflexão sobre como a escravidão moldou e ainda molda a sociedade brasileira.
“Ponciá Vicêncio” foi publicado pela Editora Mazza em 2003 e ganhou novas edições ao longo dos anos, sendo a última da Editora Pallas, em 2017, na qual nos baseamos para esse texto.