Marco Aurélio Garcia e a Oposição Metalúrgica de São Paulo
Para Pereirinha1, Pedro Pereira Nascimento, que também se foi hoje e não pode ficar para hora extra
1979, a ressaca da Greve dos Metalúrgicos da capital, aquela em que mataram o companheiro Santo Dias e prenderam no domingo a noite mais de 300 lideranças e ativistas. A mobilização não foi impedida. A Oposição Sindical Metalúrgica de São Paulo (OSM-SP) tinha faro de classe, percebeu a temperatura nas fábricas, obrigou a diretoria a alugar subsedes em 10 dias, organizou a greve a partir de comandos.
Elegeu o Pereirinha na massa como coordenador das negociações. A greve foi histórica. Pouca gente leva em conta essa greve e a de 78 na capital quando fala em novo sindicalismo. Talvez porque ainda não enxergaram o que se tecia dentro das fábricas na escuridão da ditadura, possivelmente ainda ofuscados pelos holofotes da abertura democrática. Organizar os grupos de fábrica, fazer formação e levar a reflexão (ver – julgar – agir – e viva Rossi e tod@s da JOC), fazer ver que os pelegos eram agentes, mas o problema era a estrutura sindical.
Escondendo-se de diretores do Sindicato que eram colaboradores do DOPS da ditadura2; conquistando Cipas, mudando de emprego, de região. Foi uma grande greve, e o cortejo com o corpo de Santo Dias emocionou e envolveu a cidade. A classe operária de 1917, das greves dos anos 50 e 60 mostraram à cidade a sua cara. Na ressaca dessa greve, a gente contabilizava muito mais de cem demitidos. Tínhamos a lista dos militantes, região por região. Chutando, eram perto de duzentos identificados. Fora os milhares de grevistas que foram punidos.
Em 78, o Brasil tinha conhecido a greve das “Comissões de Fábrica”. Foram mais de duzentas Comissões que brotaram. Como a Oposição Metalúrgica puxou duas greves, tendo contra a diretoria do Sindicato? Todo mundo queria saber quem era esse movimento. Em 78, as eleições foram fraudadas, anuladas e o ministro do Trabalho simplesmente deu posse aos pelegos. Anízio Batista, nosso candidato a presidente, volta ao trabalho paciente de organizar pela base. Lembrem: Santo era o candidato a vice na chapa de 78 (ver o filme Braços Cruzados, Máquinas Paradas, do Robert Gervitz. E rever!).
Pois bem, nesse cenário de terra arrasada, os ânimos continuavam altos. As Associações de Trabalhadores (futuras sedes das CUTs zonais) lotadas de piqueteiros desempregados e de trabalhadores das fábricas ganhos para a luta. Decidimos fazer um curso de formação profissional e com muita formação política. Boa parte desses metalúrgicos tinham baixa qualificação e uma luminosa vontade de liquidar a pelegada e fazer uma revolução. As mulheres não tinham acesso a nenhuma ocupação qualificada. As nossas militantes foram ter formação profissional dada por nós mesmos. Uma mulher conseguir ser reconhecida na fábrica como trabalhadora qualificada era uma guerra inglória.
Procuramos quem podia ajudar. A Maria Nilde Mascellani, através da Renov, conseguiu um dinheiro para comida e transporte e nos repassou sem frescuras, com autonomia. E se dispôs a coordenar o curso para os desempregados.
O local foi o atual CPA – Centro de Profissionalização de Adolescentes na Ragueb Chohfi, em São Mateus, que tinha bancadas, tornos, uma fresadora, uma plaina e espaço pra aulas e reuniões. E estava sem atividades durante o dia. Ponto pra gente.
O padre Hugo cedeu às oficinas, um pouco ressabiado. A OSM-SP era um puta movimento, mas eram uns cabeças duras….O sangue irlandês dele se irmanou na rebeldia. Conseguimos o divisor da fresadora no Jardim Ângela (Jd.Thomaz) de outro curso que estava desativado… Mota e eu demos todas as garantias e explicações e, claro, devolvemos alguns cursos depois.
A Maria Nilde era a nossa “diretora”. Fazia a liga. A equipe era Kopcak, Scapi, Maria Antonina, Paulo de Tarso Venceslau; dos metalúrgicos, Vito e Neto. O craque da mecânica nas oficinas era o Mota. E a gente mesmo dava as aulas profissionalizantes.
Tudo muito coletivo, dinheiro contadinho, miserê danado, mas todo mundo comia e tinha condução. Gente de todas regiões. Critérios de admissão discutidos e votados naquela nossa cultura assembleária e conselhista. Nos acusavam, santa ignorância, de anarcosindicalistas (!!!). Visto hoje, é um elogio.
…
Sabem a história do encontro do pensamento elaborado com os proletários? O Marco Aurélio tem a ver com isso.
Professores? Além da Nilde, que parecia uma fada que arrumava soluções e puxava a orelha da nossa rudeza a cada dia, mais esses da coordenação e os catedráticos, por assim dizer, foram Éder Sader e Marco Aurélio Garcia e, de quebra, o professor visitante Chico de Oliveira. Chico falava imperturbável, sereno um par de horas enquanto fazia um círculo de guimba de cigarros aos seus pés. Tinha uma decisão coletiva de não fumar nas salas – e um acordo tácito de deixar quieto porque ele ensinava muito.
A gente era turro, mas não era burro. Um clima de vida socialista no curso. Comida coletiva, transparência nas contas, muita literatura revolucionária. E muita cultura e diversão. Porta de fábricas nas madrugadas e dia inteiro de aulas e convivência. Cada turma de quatro meses assim. Amizade e companheirismo que duram até hoje. Imaginem um racha de futebol na hora do almoço e naquela disputa o cuidado de não machucar o Éder Sader que era hemofílico, mas fazia questão de jogar.
Esses anos todos tenho dito que, dos professores, o mais sério e preocupado em interagir com os alunos foi o Marco Aurélio. Nos levava muito a sério. As aulas eram preparadas, a gente percebia. Discutíamos os temas, a grade, os objetivos da formação e ele cumpria.
Para ele, era uma vida louca no seu fusquinha. Campinas, São Paulo, Pinheiros, São Matheus. 30 km do centro, trânsito do cão… E algumas poucas vezes ainda tinha a delicadeza de conversar na sua casa, onde não tínhamos noção clara de quem era a Beth Lobo, da sua importância, nem mesmo a do próprio Marco. Era um apoiador, como chamávamos quem não era metalúrgico, numa esquerda que queria revolução e não apenas o jogo institucional dito democrático. Pra gente tava de bom tamanho.
Tivemos aulas de Manifesto Comunista com o Florestan Fernandes para a incrível vanguarda do MOSMSP na Zona Sul (salve Silva! salve Chico Gordo,salve Tranca e tant@s outr@s). O professor Florestan (lembra a Nadine) dizia: “tem três questões centrais no Manifesto…”, e a peāozada anotava, entendia e discutia. E repete até hoje. Enfim, não tínhamos a dimensão do que fazíamos. Tínhamos uma percepção do rumo.
Quando soubemos do enfarte dele, matamos a charada. O Marco vivia estafado. Era um cara da revolução, da militância e do rigor téorico. Aquela bela foto grande na parede dum severo Trotsky que tinha em casa não era por acaso.Tinha pouco mais de quarenta anos quando teve um problema no coração. Talvez a abreviação da vida dele agora tenha a ver com isso.
Só o vi ocasionalmente depois que virou governo. Por acaso, em aeroportos. Mas o mesmo cara afável, do “apareça para conversar” e dava o celular, não se escondia atrás das telefonistas no Palácio. Sempre retornou. Delegações da Toscana. Emilia-Bologna, Veneto, Andalucía, crise da Parmalat, tudo que organizamos e tentamos teve seu incentivo e apoio. Deu apoio ao Fórum Mundial do Trabalho em Barcelona, organizado pelo Oriol Homs, que o IIEP fez a agenda aqui no Brasil, viabilizou o Graziano ministro ir, e foi também.
É vero que tudo isso deu em nada. A inépcia governamental em cada ministério liquidou essas cooperações. Faz parte do Livro das Oportunidades Perdidas. Na semana que mataram o Tiro Fijo, me encontrei com ele por acaso e dei uma reclamada. Deu risada e sem ironia me disse: “vou te contar que é muito pior do que você reclama”. E dizia: “vamos conversar, vamos resolver”.
Como navegou nos governos Lula e Dilma? Não sei. Só conheço o que é público. Sei que fez um esforço monumental. Quando antes secretário de Relações Internacionais do PT, sempre se podia conversar com ele sem muitas prosopopeias, sem gente vigiando horários. Ele desfiava análises sobre cada país da América Latina; apontava cenários. Era o cara pra dirigir a coisa. O formulador… Por que não lhe deram poder eu não sei.
Por último, Marco Aurélio ensaiou analisar as lutas operárias. Outras tarefas o ocupavam. É um pensamento inconcluso no tema. Metalúrgicos de São Paulo X Metalúrgicos de São Bernardo objeto de tanta análise ligeira, mas o texto dele tem rigor conceitual. Transcrevo uma parte:
“Uma visão imediatista e, por vezes, superideologizada dos processos em curso em São Bernardo e São Paulo, apresentava o primeiro como exemplo negativo de concessão ao sindicalismo oficial e o segundo como paradigma de sindicalismo independente, construído pela base, a partir das comissões de fábrica.
A realidade era bem diferente. São Bernardo, sobretudo a partir de 1979, começara a organizar suas ações utilizando centralmente o espaço sindical oficial (a greve saindo da fábrica e se transferindo para o estádio), o que poria em evidência, e de forma dramática, os limites mesmos do sindicalismo atrelado, mesmo quando ocupado por uma liderança combativa. A particularidade é que não só a liderança compreende estes limites, mas o próprio movimento passa a senti-los.
Por outro lado, apresentar a Oposição Sindical de São Paulo como estruturada essencialmente a partir das Comissões de Fábrica significava passar para a realidade o que estava ainda nas intenções.
Não é verdade também que a O.S.M.S.P. tivesse um desprezo olímpico pela intervenção no espaço sindical. A campanha salarial (e a greve) de 1979 mostrou a vitalidade da oposição (a despeito da derrota do movimento) e sua capacidade de servir-se inteligentemente da estrutura sindical nas mãos de Joaquinzão.
Na raiz desta tentativa de opor apressadamente São Bernardo a São Paulo está o vício de confrontar abstratamente duas experiências, sem levar em conta as condições de possibilidade de cada uma delas. Não é preciso ser especialista em movimento operário para constatar as profundas diferenças entre as categorias dos metalúrgicos de São Paulo e São Bernardo. Estruturas industriais radicalmente distintas, histórias sindicais próprias, enfim, um sem número de particularidades acabaram por distanciar política e organizatoriamente experiências que se encontravam tão próximas geograficamente, o que não quer dizer, no entanto, que não seja possível e até mesmo fértil a análise comparativa de ambas. Esta comparação passa, no entanto, pelo confronto das representações que o movimento foi produzindo num e noutro caso com as respectivas realidades destes movimentos.”
O Marco Aurélio Garcia retratado na grande imprensa hoje não é o que conhecemos. Na vida de cada revolucionário que nunca saiu da trilha há muitas fases. Muitos descobriram hoje que Marco Aurélio foi vereador pelo PCB. Poucos sabem da sua militância no Chile. Muitos o conheceram exilado em Paris. Muitos lembram do Marco Aurélio do Em tempo, do Arquivo Edgard Leuenroth, das secretarias da cultura… Nós o conhecemos como um dedicado e brilhante intelectual revolucionário, absolutamente solidário com uma peãozada que se construía como classe.
Hasta siempre!
Sebastião Neto
1Militante histórico da Ação Popular (AP), baiano. Em toda a história do enfrentamento com os pelegos, foi o único metalúrgico da Oposição Sindical eleito para coordenar as negociações com os patrões, durante a greve de 1979.
2A cooperação da diretoria dos Metalúrgicos de São Paulo com a repressão política e a lista dos 334 presos em 79 está no livro Investigação operária: empresários, militares e pelegos contra os trabalhadores, publicado pelo IIEP em 2014.
3O texto do Marco, “São Bernardo: a (auto) construção de um movimento operário”, publicado em 19/04/2006, está disponível no sítio da Fundação Perseu Abramo: http://csbh.fpabramo.org.br/o-que-fazemos/memoria-e- historia /exposicoes-virtuais/sao-bernardo-auto-construcao-de-um-movimento-op