Quando se rompe o laço de credibilidade entre o cidadão comum e o aparelho judiciário – e ele já não tem a quem recorrer – a despeito de toda a aparência de normalidade, instala-se a barbárie”.

O fino verniz da legalidade burguesa no Brasil não resistiu ao sal da crise de Estado produzida pela inserção dos pobres no orçamento público durante os governos populares liderados pelo Partido dos Trabalhadores, Lula e Dilma à frente. Esse desarranjo no funcionamento do Estado que tutela a sociedade mais desigual do planeta provocou um violento processo de restauração.

Os mesmos setores de sempre, situados no topo da pirâmide social, engrenaram a marcha à ré para impedir um processo – ainda incipiente – de desenvolvimento com distribuição de renda que apontava no sentido de reduzir as criminosas desigualdades sociais e regionais cristalizadas no apartheid que marca a história do país ao longo de cinco séculos.

Uma classe trabalhadora atônita, que conta com precários instrumentos organizativos para uma efetiva ação de massas, combate com valentia, mas com pouca eficácia, em defesa de direitos acumulados nas lutas dos últimos setenta anos, que todos imaginávamos consolidados na Carta Constitucional de 1988. Não alcança ainda convencer a extensa base social assalariada que busca representar, dos efeitos devastadores das contrarreformas. No imediato, expressos com a elevação das taxas de desemprego; no médio e no longo prazo, com a ausência de proteção aos mais pobres; com o congelamento dos investimentos públicos por 20 anos; com a abolição das garantias trabalhistas e a liquidação previdência social.

Vai, a duras penas, submetida a um bombardeio asfixiante dos monopólios de comunicação, se dando conta de que o golpe não foi efetivado para combater a corrupção – afinal, em lugar algum se combate a corrupção instalando uma quadrilha para administrar o país – mas para suprimir o capítulo dos direitos sociais da chamada Constituição Cidadã e enxuga-la de qualquer veleidade de inclusão social que justifique o título.

Com relativo sucesso a resistência dos trabalhadores conseguiu fazer os assalariados, contando aí os setores médios, compreenderem os danos que sofrerão com a liquidação da Previdência Social e a consequente entrega do sistema de previdência pública aos bancos.

Com relação à mal chamada Reforma Trabalhista, no entanto, prevalece até agora uma baixa capacidade de explicar as consequências nefastas sobre as relações entre assalariados e empregadores ao instituir a supremacia do acordado sobre o legislado; introduzir a vigência das contratações temporárias; vender malandramente uma antiga ilusão capitalista de que o trabalhador “é o empreendedor de si mesmo” e com isso nos fazer engolir a patranha ideológica da igualdade de condições entre patrão e empregado no momento do contrato. Tudo isso num país que arrasta atrás de si os ossos da tradição escravocrata nas relações de trabalho.

A arrogância da direita triunfante, verbalizada há poucos dias por um ex-ministro tucano e reiterada pelo dono do maior banco do país já anuncia seu propósito: liquidar a força dos sindicatos como condição indispensável para prosperar a super exploração da mão de obra assalariada e nos remeter às condições que antecederam à Lei Áurea. O sonho dos neoliberais do século XXI, nestes trópicos, reproduz as feições dos sonhos de seus avós, os liberais do século XIX: repousa sobre a exploração do trabalho escravo, ou da “servidão voluntária” como definiu há poucos dias um juiz do trabalho.

Problemas. Os prepostos que ocuparam a vanguarda do golpe para cumprir a agenda neoliberal: retirar o Brasil da exploração da maior riqueza descoberta pela Petrobrás, a maior do século, e abrir as jazidas do Pré-sal para as petroleiras concorrentes; aprovar a lei da venda de terras a estrangeiros; franquear a Base de Alcântara aos EUA; desmantelar o Programa Nuclear; votar a reforma trabalhista e a liquidação da previdência social. Os encarregados de conduzir esse programa sinistro para qualquer nação, materializam nos atos quotidianos o oposto do discurso que galvanizou os corações das classes médias envergando a camisa amarela da seleção pelas ruas do país: o combate sem tréguas à corrupção.

Pouco tempo se passou e nem os segmentos mais estúpidos das classes médias envenenados pelo bombardeio fascista que jorra dos meios de comunicação engole a farsa: não se combate a corrupção utilizando o lumpen encabeçado por Eduardo Cunha, Michel Temer, Romero Jucá, Eliseu Padilha, Henrique Alves, Moreira Franco, Geddel Vieira Lima, Aécio Neves, José Serra para nos atermos à linha de frente. Estes senhores não encontram tempo para governar. Estão diariamente às voltas com os Procuradores do Ministério Público e os Delegados da Polícia Federal. Aquele suplente de deputado, Rocha Loures, mencionado por Temer como um rapaz “de boa índole“, flagrado com a mala contendo $500 mil reais, generosamente oferecidos pela JBS a um destinatário por enquanto não identificado, não conta naquela vistosa vanguarda. Trata-se apenas de um contínuo do presidente usurpador. O fato passa indiferente aos olhos dos setores sociais e políticos que sustentam o governo e o simulacro de legalidade que ele encarna. E como um acidente aos olhos do Judiciário que o libertou na última semana, agregada uma tornozeleira eletrônica à indumentária.

O governo visivelmente se decompõe. Gangrenou. A cada semana perde um pedaço, alvejado por denúncias de corrupção. Sua sobrevivência virou uma permanente fuga para frente. Acossado pela Polícia Federal e pelo Ministério Público. Os mesmos procuradores que deram uma decisiva contribuição para que pusessem abaixo o governo de Dilma Rousseff, eleito pelo voto popular e se instalassem no Palácio do Planalto em seu lugar, para regenerar o país da mancha do petismo.

O governo golpista cambaleante segue porém, desafiando a lógica e a decência, encontrando energia suficiente para levar adiante a agenda antinacional e antipopular, ainda que tenha de lançar ao mar o cadáver político de Temer, substitui-lo por um Rodrigo Maia embalsamado até 2018 e atender aos objetivos originais do golpe: restaurar a agenda neoliberal implementada parcialmente pelos governos Collor e Fernando Henrique e interrompida nos governos Lula e Dilma para dar lugar a um Projeto de Desenvolvimento Democrático Popular e de afirmação da soberania nacional que não sobreviveu às contradições da base social e política que por doze anos o sustentou.

Prepara-se o funeral de Michel Temer para poupar o nariz dos mais sensíveis e perfumam Rodrigo Maia para impingi-lo à nação, antes que as maiorias sociais tenham conseguido acumular força suficiente nas ruas com a mobilização da sociedade por Diretas Já! e, assim, recuperar a soberania popular, único caminho para impedir o aprofundamento da catástrofe que o golpe significa para o Brasil.

*Pedro Tierra, ex-presidente da Fundação Perseu Abramo.

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