Márcio Pochmann: ‘A mão-de-obra brasileira não é cara’
No fim da noite da quarta-feira 28, a Comissão de Constituição e Justiça do Senado aprovou o texto da reforma trabalhista. O projeto segue agora para o plenário em regime de urgência e deve ser votado antes do recesso parlamentar, a partir de 17 de julho. É uma tentativa de Michel Temer, acuado pelas denúncias de corrupção, mostrar serventia ao poder econômico e se manter no Palácio do Planalto.
O argumento que embasa a reforma é o mesmo que tem sido usado para atacar o arcabouço legal praticamente desde que Getúlio Vargas, no início dos anos 1940, reuniu toda as regras existentes na Consolidação das Leis do Trabalho. Um dos maiores especialistas brasileiros no tema, o economista Márcio Pochmann aponta as falácias dos argumentos contrários à CLT.
O trabalhador nativo não é caro, afirma na entrevista a seguir. Ao contrário. Atualmente a mão-de-obra chinesa custa 16% mais, enquanto o custo de um empregado nacional corresponde a apenas 17% daquele de um similar nos Estados Unidos. “Nosso problema neste momento é de demanda. O Brasil está sem rumo”, resume o professor da Unicamp e presidente da Fundação Perseu Abramo.
CartaCapital: Os indicadores da economia não são nada conclusivos, apesar da tentativa do governo e da mídia alinhada a Michel Temer de vender otimismo. O que é possível afirmar sobre a situação do Brasil neste momento?
Marcos Pochmann: O movimento de recessão iniciado a partir de 2015 se constitui no terceiro período desse tipo no Brasil urbano e industrial. Primeiro, enfrentamos a recessão de 1981 a 83. A segunda ocorreu entre 1990 e 92. De certa maneira, existem pontos comparáveis. Em todos esses momentos houve uma queda profunda do nível de atividade, seguida de uma breve recuperação e de um novo mergulho da economia. Quando se olha os indicadores deste ano, tudo indica que paramos de cair. Talvez o Brasil cresça um pouco acima de zero, mas nada permite apostar em uma recuperação consistente de agora em diante. O aumento das exportações e a produção agrícola foram dois elementos importantes para uma certa reanimada.
CC: Efeitos temporários…
MP: Sim. A política econômica aposta na contenção das despesas públicas, principalmente por meio da PEC do Teto dos Gastos. Isso significa que o Estado não poderá dar a sua cota para tirar o País da recessão.
CC: E o setor privado?
MP: O sistema bancários enfrenta dificuldades na área de crédito. As famílias continuam endividadas. A taxa de juros rela permanece extremamente alta, pois ao corte da Selic corresponde um recuo da inflação, provocado em grande medida pela recessão. Pode ser que a economia empate em 2017, gire perto de 0%. Mas podemos caminhar para um novo recuo do PIB no próximo ano.
CC: A promessa dos apoiadores do impeachment é que a derrubada de Dilma Rousseff imediatamente estimularia a confiança dos empresários e reacenderia o “espírito animal” dos investidores. O que aconteceu?
MP: Como ter confiança? As reformas em tramitação no Congresso prolongam a insegurança jurídica. Vamos partir do pressuposto de que teremos eleições no próximo ano. As reformas estarão na pauta do debate eleitoral. Quem garante que o vencedor em 2018 não irá reformar as reformas? Tenho conversado com muitos empresários e eles expressam preocupação com, por exemplo, a lei de terceirização. Muitos acham que ela é ruim, mal elaborada. E se perguntam se não irão gerar um contencioso para o futuro se um próximo presidente revisar a legislação. Não vejo como as reformas garantirão a previsibilidade necessária para estimular os investimentos privados.
CC: Por que a terceirização não é considerada suficiente pelas grandes empresas?
MP: A terceirização é uma reforma trabalhista, pois abre uma série de possibilidades de universalizar a forma de contratação via terceirização. Isso vai atender certamente demandas relacionados a empregadores no setor público e para pequenas, no máximo médias empresas. No caso das grandes companhias, a terceirização avançou muito nos últimos anos. Há casos, inclusive, de corporações que voltaram atrás no processo. A terceirização responde a problemas concretos. No setor público, por causa da crise fiscal, prefeituras trocaram os concursos públicos por licitações para, por exemplo, contratar professores pelo menor salário. A grande empresa precisa de algo diferente, daí a proposta que altera mais de 300 dos pouco mais de 900 artigos da Consolidação das Leis do Trabalho.
CC: A CLT é mesmo tão antiquada, a ponto de ser eliminada ou totalmente reformada?
MP: Desde a consolidação das leis trabalhistas em 1943, quase 90% dos artigos da CLT foram modificados. A legislação brasileira é coetânea daquelas dos Estados Unidos e da maioria dos países da Europa. Não tem nada de diferente. É estranho o argumento de que a CLT é antiga e ultrapassada. O direito do trabalho no Brasil é dos anos 1930. O direito à propriedade privada é de 1850, mas ninguém diz que ele perdeu a função. Muitas das mudanças importantes no mercado de trabalho passam a largo da legislação e basicamente tem a ver com as relações no setor de serviços.
CC: Que tipo de mudanças?
MP: Com o avanço da tecnologia da informação, o trabalho se tornou portável, pode ser realizado fora dos locais para os quais havia sido erigido o direito do trabalho. No passado, a jornada começava quando o empregado chegava à fábrica e batia o cartão de ponto e terminava quando ele saía de lá. Hoje é diferente. É possível exercer as funções fora do local de trabalho. A CLT não podia prever a revolução tecnológica. O mais importante seria incorporar à legislação a mediação dessas novas realidades.
CC: O trabalhador brasileiro é caro como se diz?
MP: O custo do trabalho no Brasil até 2014 era 20% maior do que na China. Repetia-se o mantra de que era impossível competir com os chineses por causa disso. A partir de 2016, a mão-de-obra na China passou a custar 16% mais do que aqui. Igualmente até 2014, um trabalhador brasileiro custava um terço do equivalente nos Estados Unidos, atualmente vale 17%. Não há, portanto, como validar o argumento do custo alto da nossa mão-de-obra. O problema da economia é falta de demanda no mercado interno. O Brasil está sem rumo, os empresários não sabem o que fazer. Na última década, com as mesmas regras trabalhistas em vigor, geramos milhões de empregos.
CC: O quanto as desonerações fiscais promovidas pelo governo Dilma foram responsáveis pela crise econômica?
MP: Houve uma reorientação da política econômica a partir de 2011. Gradualmente ela chegou à recessão pelas mãos de Joaquim Levy, que havia quebrado o Rio de Janeiro e foi chamado para aplicar o mesmo modelo no plano nacional. A política anterior, no governo Lula, de estimular a demanda agregada, consumo e investimento, começou a apresentar limites em 2008. Gerava renda para os indivíduos sem reação do setor produtivo. Isso levou ao aumento das importações e a um rombo no saldo comercial dos produtos manufaturados. A reorientação sob Dilma tentou, de certa maneira, transitar para uma política de oferta agregada. As desonerações entram nesse contexto. Com custo menor, em tese as empresas investiriam mais e cortariam preços. Não aconteceu. E houve o represamento dos preços administrados…
CC: Da Petrobras, entre outros.
MP: Sim. A contenção dos reajustes dos preços dos combustíveis provocou sérios problemas para o caixa da petroleira. Foi parecido no caso do custo da energia elétrica, agravado pela seca no período, que esvaziou os reservatórios das hidrelétricas. Essas benesses não foram repassadas aos preços. Acabaram incorporadas à margem de lucro dos empresários.
CC: O que o próximo governo terá de fazer para reencontrar o caminho do crescimento?
MP: É difícil prever. Sem querer ser otimista em excesso, acredito que o Brasil sempre se moveu em momentos de crise, de recessão. Não faço aqui um juízo de valor, se os movimentos foram bons ou ruins. A recessão dos anos 1980 preparou o País para as exportações. A queda do PIB no governo de Fernando Collor levou às privatizações do período Fernando Henrique Cardoso. O complicado é saber o que esta recessão vai gerar, pois é a mais grave da nossa história, quase dez pontos percentuais de redução do Produto Interno Bruto per capita.
CC: O que o senhor indicaria?
MP: O Brasil precisa se reindustrializar, mas não só. Necessita se interiorizar, pensar em uma expansão para o oeste. Cinco séculos após a descoberta do País, continuamos colados ao litoral. Ao contrário do que muitos defendem, acho importante criar novas cidades e não reduzir o número delas. Os chineses criaram sete novos municípios e ancoraram ali seu salto econômico.
CC: Não temos muitas cidades financeiramente insustentáveis?
MP: De fato, 26% dos municípios são “cidades fantasmas”: não tem arrecadação ou população. Normalmente se tratam de áreas agrícolas com atividades econômicas que não se sustentam. Para interiorizar, é preciso acoplar uma política de estímulo à interiorização dos serviços. Por que tantos médicos não se mudam para o interior, apesar das ofertas polpudas de salários? Por conta da falta de boas escolas, de lazer, de restaurantes… Outro ponto: os casais têm cada vez menos filhos. O País vive uma transição demográfica, os habitantes ficam mais velhos. Por que temos de aceitar essa tendência como inevitável? Várias nações estimulam a elevação do número de filhos. Para um país continental como o Brasil, 230 milhões de habitantes são suficientes? Ainda estamos em construção, somos uma nação jovem.
CC: Como recuperar a força da indústria com a demonização dos instrumentos tradicionais de estímulo e com setores cruciais destruídos pela Lava Jato?
MP: O PT tentou experimentar um modelo de capitalismo de Estado que deu certo na Coreia do Sul, que tem 12 grandes grupos econômicos organizadores da atividade produtiva. Até os liberais celebram o sucesso da Coreia. Não dispensaria a experiência de estimular a presença internacional das nossas companhias. Mas ela não gera tantos empregos internos. E não estamos preparados para estimular a geração de postos de trabalho em micro e pequenas empresas. Não há uma universidade para pequenos negócios e falta um banco especializado no setor, para citar duas lacunas. Não é imaginável uma reindustrialização para retornar ao modelo dos anos 1970, um parque diversificado. Mas existem setores que podem constituir núcleos importantes. Cito em particular a Defesa, a indústria associada ao agronegócio e o complexo da saúde. Só as encomendas do SUS são suficientes para sustentar um sistema industrial. E, apesar dos problemas, temos a área de petróleo e gás.
CC: O senhor enxerga algum horizonte de recuperação da economia?
MP: Só vamos ter uma recuperação de fato se mudarmos o eixo da política econômica. O Banco Central acaba de divulgar o relatório trimestral de inflação. Caminhamos rumo a uma depressão, pois deflação é sinal de que a economia não reage. Com o teto de gastos, enxergo um País estagnado, em situação pior do que aquela dos anos 1980. Os problemas sociais tendem a se agravar. O federalismo praticamente desapareceu com a crise nos estados. A maior parte da sociedade é contra o atual governo, contra o modelo econômico, do receituário das reformas. Mas falta articulação, lideranças e um projeto que unifique o campo progressista. Se tivermos capacidade de construir esse projeto, ele será vencedor, em um horizonte muito melhor do que o atual.