Assassinatos de camponeses em série transformam Pará no estado da impunidade
Sábado, 23 de junho, véspera de São João, Maria Trindade da Silva Costa, trabalhadora rural de 68 anos, voltou para casa depois de trabalhar o dia inteiro na torrefação de farinha e no roçado. Depois de chegar em casa, Maria saiu de bicicleta e não mais foi vista até o dia seguinte, quando um dos filhos a encontrou morta e enterrada. Maria Trindade era líder de uma comunidade quilombola rural, localizada em Santana do Baixo Jambuaçu, município de Moju, Nordeste do Pará, a 61 quilômetros de Belém. Maria lutava pela titulação de terras quilombolas, deixou marido, seis filhos e seis netos. Mais um assassinato na lista das mais de trezentas mortes que se acumulam somente nas últimas duas décadas, naquele estado, no conflito pela terra.
Quando o corpo de Maria Trindade foi encontrado, completava-se um mês da chacina em Pau D´ Arco, também no Pará, quando nove homens e uma mulher foram mortos na fazenda Santa Lúcia, localizada no Sudeste do Pará, a 860 km de Belém. As mortes dos posseiros ocorreram durante uma suposta ação de cumprimento de catorze mandados judiciais, dos quais seis eram de prisão preventiva e oito de prisão temporária, relacionados ao assassinato de um segurança na fazenda, ocorrido dias antes.
Somente nos últimos sessenta dias já se somam dezenove mortes em áreas rurais, dezoito já comprovadas em conflitos de terras. Para o deputado Carlos Bordalo (PT), presidente da Comissão de Direitos Humanos e Defesa do Consumidor – CDH, da Assembleia Legislativa do Pará, há um recrudescimento da violência no campo no Estado do Pará. Bordalo fez parte do grupo que compôs a diligência que esteve em Pau D´Arco dois dias após o massacre e questiona a versão inicial do Estado, que afirma que houve confronto entre os posseiros e a polícia. “Os relatos dos sobreviventes, coletados em testemunho, apresentaram outra história, contradizendo a versão oficial apresentada pela cúpula da Segurança Pública”, explica Bordalo.
Para o deputado Lélio Costa (PCdoB), membro permanente da CDH, não há elementos que sustentem a tese de confronto. O relatório da diligência apresentado pela CDH menciona que nos corpos dos dez trabalhadores assassinados foram encontradas perfurações de balas nas costas, nas nádegas, nos crânios por trás, além de indícios fortes de tiros à queima-roupa. “Esses achados indicam que houve de tudo, menos confronto”, enfatiza.
A tensão no campo agora traz um dado relativamente novo, o assassinato de mulheres. Com a morte de Maria Trindade, já são três lideranças femininas assassinadas no conflito do campo em pouco mais de trinta dias. Ainda no início de maio, Kátia Martins foi covardemente morta dentro de casa e na frente de um neto, no assentamento na qual era líder, localizado na zona rural do município de Castanhal, cidade ainda da Região Metropolitana de Belém. Depois, seguiu-se o homicídio de Jane de Oliveira, no episódio da fazenda Santa Lúcia, em Pau D’ Arco.
A situação da violência no Pará dá indicativos de que está fora de controle em vários níveis. Dias após a divulgação do relatório da diligência da CDH da Alepa, parlamentares e lideranças ligadas a órgãos de segurança Estado iniciaram um movimento em defesa dos policiais envolvidos na chacina em Pau D’ Arco. Por meio da distribuição de vídeos pelas mídias sociais, as ações procuravam desconstruir os primeiros resultados apontados pelo relatório da diligência da CDH.
A tensão em torno dos resultados apresentados pelo documento aumentou de tal sorte que no dia 5 de junho, em uma reunião para tratar do assunto com parlamentares da bancada paraense na Câmara, o deputado federal Éder Mauro – um dos defensores da versão inicial dos órgãos de segurança pública – tentou agredir o deputado Bordalo dentro da Assembleia Legislativa, ato que for amplamente registrado em vídeos.
Na cidade e no campo – No dia seguinte ao episódio de agressão na Alepa, ocorreu no bairro da Condor, periferia de Belém, uma chacina que resultou na morte de cinco pessoas e feriu mais 14, dentre elas duas crianças. Os autores, cerca de oito homens encapuzados, chegaram atirando para todos os lados, atingindo principalmente quem assistia a uma partida de futebol em um bar.
A história de vida dos assassinados mostra que eram trabalhadores, pessoas comuns, por isso mesmo, alguns observadores, avaliam que o massacre na Condor não foi um fato isolado, mas sim uma resposta de grupos de milicianos ao teor do relatório preliminar da Comissão de Direitos Humanos da Alepa. A atuação da milícia urbana no Pará já foi objeto de CPI e de inquéritos abertos pela polícia civil e promotoria militar.
Desde 1996, quando 19 trabalhadores sem-terra foram massacrados em Eldorado dos Carajás, no Pará, em um episódio que marcou o Estado não só pela forma como ocorreu – diante das câmeras de uma estação de televisão que cobria a desocupação da Curva do S – mas também pela dificuldade em se punir todos os responsáveis, não se via no Estado um endurecimento tão grande da luta pela terra. Naquela altura, o governador do Estado era Almir Gabriel, do PSDB.
De lá para cá pouca coisa mudou, o PSDB ainda está no poder e os números de assassinatos no campo e na cidade só aumentaram. De acordo com levantamento da Comissão Pastoral da Terra-CPT, nos últimos 21 anos mais de trezentos assassinatos foram registrados na região, a grande maioria segue sem que quase ninguém seja efetivamente punido por essas mortes. O poder público local não consegue responder à altura dos desafios traçados pelos rumos tomado pela violência no campo e na cidade, com o agravante de que as lideranças rurais e de Direitos Humanos se encontram cada vez mais ameaçadas.