Dois documentários disponíveis aos brasileiros neste mês de junho poderão provocar um curto-circuito na alma de quem os assista sem o devido intervalo de tempo e alguma paz de espírito.

Por um lado, em Betting on Zero (no Netflix) somos apresentados ao hiper-realismo da inescrupulosa saga da Herbalife norte-americana, empresa que “emprega” um exército de 2,7 milhões de “distribuidores independentes” ao redor de 88 países e que tem sido apontada como uma imensa pirâmide financeira, na qual as compras e as esperanças tolas dos que estão embaixo (na maioria trabalhadores imigrantes ilegais) sustentam os monumentais lucros dos que habitam o topo.

São diversas as barbaridades reveladas em Betting on Zero, mas talvez o que mais assuste na história seja descobrir que o enfrentamento dessa monstruosa fraude da Herbalife não resultou da ação diligente de alguma autoridade pública ou da acurácia da agência reguladora dos EUA. O que fez trincar o castelo da empresa de nutrição foi a aposta agressiva de Bill Ackman, um famoso e controverso megainvestidor de Wall Street que, ao tomar conhecimento da maracutaia, enxergou nela uma grande oportunidade para ganhar dinheiro. Depois de aplicar um bilhão de dólares contra o valor das ações da Herbalife (i.e., operando vendido) Ackman veio a público denunciar a pirâmide disfarçada de rede de “distribuidores independentes”, na esperança de que isso derrubasse o preço das ações e lhe permitisse multiplicar seus dólares.

O documentário é uma aula de capitalismo a céu aberto, cujos desfechos em nada surpreendem. Depois de pagar uma multa de duzentos milhões de dólares e assim evitar que fosse investigada por fraude financeira, a Herbalife assinou um acordo de leniência que lhe permitiu continuar operando no mercado de alimentos dietéticos. Já Bill Ackman mantém sua queda de braços em Wall Street, enquanto um exército de novos desavisados continua comprando os kits da Herbalife na esperança de um dia poderem chegar à Lua.

Já no outro documentário – Amanhã – vai-se sem escalas ao extremo oposto. O jovem casal que dirige o filme se propõe a mostrar as inúmeras práticas de vida alternativa que pululam nas chamadas Transition Towns (cidades em transição) e que indicam que já dispomos de conhecimento, técnicas e resultados concretos com potencial para reinventarmos o mundo em que vivemos. São diversas iniciativas interessantes, desde gente que produz alimentos orgânicos ou energia elétrica em locais estranhos e de formas inusitadas, até cidades ou bairros que criaram suas próprias moedas comunitárias, como por exemplo a nota de $ 21 libras que faz a alegria do pequeno vilarejo de Totnes, no sul da Inglaterra (mas o que será que esses caras têm contra o sistema decimal?).

E como não poderia deixar de ser, diante da barbárie dos dias que correm, é um bálsamo para a alma assistir ao bem-intencionado Amanhã. Uma coleção de boas ideias, protagonizadas por gente sorridente e de coração aberto, libertários de todas as cores que podem apostar numa vida menos estúpida e mais distante dos interesses das grandes corporações multinacionais e de seus shakes milagrosos.

Aos que por ventura assistirem aos dois documentários, será certamente tentador imaginar que o primeiro é o raio X de um mundo podre, amoral, que caminha para a extinção, enquanto o segundo é uma janelinha de ar fresco que nos autoriza acreditar num futuro mais razoável e harmonioso, sem agrotóxicos, sem corruptos, sem a mão pesada dos donos da grana.

Infelizmente, contudo, os dois enredos negam ao espectador qualquer reflexão mais consistente sobre a Economia Política que cerca cada um daqueles mundos. E esta é uma omissão no mínimo lamentável. Não parece muito inteligente aceitar o atalho das pequenas observações e deixar de apontar os problemas sistêmicos, derivados da política, que efetivamente são a causa última desta realidade multifacetada que nos cerca. Gostemos ou não, foi com a política que chegamos até aqui e só com ela poderemos encontrar uma saída.

FICHAS TÉCNICAS:

TÍTULO: Betting on Zero

ANO DA PRODUÇÃO: 2016

DIREÇÃO: Ted Braun

PAÍS DE ORIGEM: EUA

ONDE ASSISTIR: Netflix

TÍTULO: Amanhã

ANO DA PRODUÇÃO: 2015

DIREÇÃO: Cyril Dion, Mélanie Laurent

PAÍS DE ORIGEM: França

ONDE ASSISTIR: Mostra de Cinema Francês Varilux