As tentativas de enfrentamento à problemática do crack, por parte da prefeitura de São Paulo, nunca foram tão desastrosas e nocivas aos usuários e à paisagem da cidade como as atuais empreendidas pelo prefeito João Doria. A violência excessiva, a falta de estrutura e superlotação dos abrigos, e o total desrespeito aos usuários, às técnicas de tratamento médicas indicadas, à paisagem urbana e aos moradores das regiões onde as cracolândias vão se instalando, são as principais características da atuação da atual administração municipal na gestão deste problema.

Subproduto da cocaína, o crack foi identificado pela primeira vez nos Estados Unidos na década de 1980. A Cracolândia paulistana surgiu em meados de 1990 na região da Luz e Santa Ifigênia, centro da cidade, e desde então vem se expandido e renomeando tais bairros. Segundo o Ministério Público, atualmente já são oito na cidade, além da estimativa de outras 22 minicracolândias. No mapa abaixo é possível identificar as oito maiores.

Crack – A tentativa de varrer os usuários para baixo do tapete

As tentativas de enfrentamento ao problema não são de hoje. Na mesma década de seu surgimento, o então governador Mário Covas implantou as primeiras medidas, que eram basicamente policiais, fazendo apreensões e prisões rotineiras. O ex-prefeito José Serra, em 2005, iniciou o projeto Nova Luz, tentando enfrentar a situação prioritariamente com projeto urbanístico, que pretendia conceder à iniciativa privada noventa prédios entendidos como degradados na região. Com o tradicional ‘abandono do barco’ de Serra, em 2007, Gilberto Kassab seguiu executando o projeto, e afirmou que “não existe mais a Cracolândia… Uma página virada da história de São Paulo”. Mesma afirmação da então secretária de Justiça do governador Geraldo Alckmin, em 2012, quando mais de trezentos policiais espancaram, prenderam e dispersaram vários “nóias” do centro da cidade. Tais ações, reforçadas pela ausência de outras políticas efetivas e de locais adequados para tratamento, só corroboraram para o surgimento de novos agrupamentos de diferentes proporções em vários bairros da cidade.

Chamar e tratar os usuários de crack como meros zumbis ou criminosos demonstra um olhar simplista e equivocado por parte dos gestores públicos. O neurocientista norte-americano Carl Hart, professor da Universidade de Columbia e que estuda drogas há mais de vinte anos, discorda totalmente das práticas adotadas em São Paulo: “Tratamento obrigatório para viciados em crack é ação ‘ridícula’… Minha primeira impressão é que o novo prefeito está colocando a política à frente das pessoas”. O resultados dos estudos do professor comprovam que os usuários buscam as drogas como fuga do seu estado consciente, pela desesperança causada por falta de oportunidades para enfrentamento da pobreza, do desemprego, da violência e outras mazelas sociais que acabam também por desencadear doenças psiquiátricas, como traumas e transtornos de ansiedade. Suas experiências comprovam que quando são oferecidas tais oportunidades, os usuários conseguem tomar decisões racionais em detrimento da droga. Segundo o mesmo, a visão de que todos usuários são viciados está equivocada: apenas 15 a 20% dos usuários de crack estão nesta condição, número muito similar, ou até inferior ao de outras drogas, pois considera-se que cerca de 33% dos fumantes são viciados, assim como 25% dos consumidores de heroína, 15 a 20% de cocaína, 10 a 15% de álcool e 10% dos usuários de maconha.

Carl Hart insiste, citando que “muitas pessoas ricas usam droga e estão bem, por possuírem mais oportunidades”, e dá exemplo da política de bem-estar social não moralista suíça, que fornece inclusive drogas e renda aos usuários durante o seu tratamento. Em seus experimentos com usuários de crack e de metanfetaminas, dependendo das alternativas oferecidas, grande maioria não optava pelas drogas. O tratamento forçado pode até resultar em pessoas que cessam o uso de drogas por algum tempo, mas, sem este “reforço alternativo” elas acabarão voltando para a rua, pois sempre haverá oferta da droga e algum local escuro para consumir. Segundo o ator e escritor Márcio Américo, também ex-usuário de crack, em entrevista à jornalista Eliane Trindade, da Folha, a taxa de recuperação nas clínicas e fazendas terapêuticas mais reconhecidas, entre aqueles que se internam voluntariamente ou foram convencidos por familiares, já é bem baixa. Para quem é levado à força, a taxa é zero por cento.

Neste sentido, em 2014, o ex-prefeito Fernando Haddad iniciou o Programa Braços Abertos, que buscava amenizar esta carência dos usuários, propondo ações intersetoriais e sinalizando com novas oportunidades de geração de ocupação e renda aos mesmos. Eles conseguiram vagas residenciais em pensões no entorno, e alguns começaram a trabalhar em atividades remuneradas como varrição de ruas, jardinagem e reciclagem, além de atividades ocupacionais de cultura. De acordo com a Secretaria Municipal de Saúde, à época, os índices de consumo e dependência da droga reduziram consideravelmente entre os aderentes ao Programa. O fluxo de usuários também reduziu e, segundo a Polícia Militar, houve significativa redução de furtos a pessoas e veículos na região. Ainda assim, ações policiais truculentas, demanda por expansão do projeto para outras áreas da cidade, melhor infraestrutura de moradias/abrigos e dos locais de tratamento, e maior diversidade de atividades e oportunidades aos usuários, ainda eram desafios a serem superados pelo Braços Abertos. Todavia isto não será possível, uma vez que o mesmo foi descontinuado pela atual gestão Doria, que vem priorizando práticas já adotadas por governos tucanos anteriores e que, infelizmente, já tiveram seus resultados ineficazes perceptíveis mesmo à parcela da população que tende a fechar os olhos para o assunto, quando estes usuários praticamente batem às suas portas ao se espalhar por bairros mais nobres da cidade.

Assim como à época do ex-prefeito Serra, a pressa da prefeitura em desocupar o local, espalhando pessoas para outros locais da cidade e destruindo imóveis em cima de usuários inclusive, faz arregalar os olhos para interesses de especulação imobiliária por trás da ação, uma forma higienista de expulsar os usuários e moradores mais pobres, complementada pela revalorização econômica da região. A ressuscitação do Projeto Nova Luz parece eminente, pois foi anunciada, ainda que de forma conturbada, pela já não tão amistosa dupla Doria e Alckmin há poucas semanas, prevendo um grande número de demolições numa área de 45 quarteirões.

A recente indução de migração de usuários para a terra natal fornecendo “kit migrante” em caixas de papelão, além das já citadas práticas de violência desproporcional, metodologia de tratamento equivocado e ultrapassado, aparentes interesses escusos motivadores da ação e o espalhamento dos usuários públicos de crack pela cidade de São Paulo, ao invés da prometida redução, são ações que, além de reforçarem o estereótipo do usuário de drogas para a população como um todo, mostram que a política adotada pela atual administração Doria no combate ao crack só cometeu equívocos. Será inexperiência em gestão de fato, ou priorização do fim, em detrimento dos meios? Será preferência pelo marketing, em detrimento à efetividade? Aparentemente ambos, a tirar pelo resultado desumano e desastroso que se vê atualmente nas ruas da cidade que não dorme. O que a atual administração não percebe é que, no caso do combate ao uso do crack, não há tapete para onde se possa varrer o problema para baixo.