O teólogo e o sociólogo da libertação dos povos, François Houtart, conhecido como o “Papa da antiglobalização”, morreu na terça-feira, 6 de junho, pela manhã em Quito, Equador.

François Houtart nasceu em Bruxelas em 1925 e se tornou padre em 1949.

Doutor em Sociologia pela Universidade Católica de Lovaina, se tornou uma das principais vozes da renovação da Igreja. Foi o responsável por sistematizar e apresentar a proposta da América Latina no Concílio Vaticano II, por nomeação do ex-presidente do Conselho Episcopal Latino-americano (CELAM), Dom Hélder Câmara.

A voz de Houtart esteve marcada pelas lutas dos povos desde a década de 1950.

Nos últimos anos, vivia em Quito, no Equador, onde atuava como professor no Instituto de Altos Estudos Nacionais e na Universidade Central do Equador.

Escritor incansável, publicou cerca de 70 livros, entres eles, “Mercado e Religião e Sociologia da Religião”, além de diversos artigos e conferências.

De acordo com o site La Línea del Fuego, François Houtart acompanhou o processo dos governos progressistas na América Latina, entre o apoio vigilante e a crítica. Nos últimos anos, esteve preocupado com questões relativas à crise e à decadência do capitalismo na América Latina e com a necessidade de buscar novas alternativas.

Em 2016, o sociólogo esteve em um evento no Brasil e conversou com o Brasil de Fato e com o Movimento Nacional dos Trabalhadores Rurais sem Terra (MST).

Confira trecho da entrevista

Brasil de Fato/MSTO senhor e vários outros intelectuais contemporâneos têm falado sobre o caráter multifacetado (ambiental, político, econômico, etc.) desta crise atual que o mundo tem vivido. Essas diferentes crises têm uma matriz comum ou é necessário fazer ressalvas entre elas?

François Houtart: Não. Em geral, a ideia fundamental é de que a crise é uma coisa comum e parte da lógica do sistema capitalista. Temos uma lógica de acumulação do capital que cobre toda a realidade econômica sem pensar nas consequências ambientais, sociais, etc., porque são consideradas como externalidades, e não é o capital que paga por esses danos. Agora, há uma dimensão imensa de destruição da biodiversidade e da base material da vida, como a água, por exemplo, e é algo de tal dimensão que não se pode ignorar que finalmente a base dessas crises todas é a lógica de exploração da natureza pelo capitalismo, que também traz muitas consequências sociais e culturais.

Há uma economista alemã que diz que o capitalismo está como desconstrutor de todas as formas passadas da produção e da organização econômica e social, mas também construtor de uma nova forma. Mas agora esse aspecto de construção está em perigo pelo aspecto de destruição, que é tão forte no mundo inteiro que não se pode pensar que é possível continuar dessa maneira indefinidamente. Por isso vários economistas e outros pensadores têm dito que o capitalismo terminou seu ciclo histórico. Tem um historiador egípcio que fala em capitalismo senil, mas é um capitalismo ainda muito forte e capaz de resistir de maneira ainda mais violenta quando está chegando ao final do seu ciclo.

Durante a crise de 2008, os movimentos e outros atores que analisam a conjuntura internacional  já apontavam a existência de uma crise civilizatória, que não era unicamente uma crise econômica. Mesmo assim, tivemos depois desse período, uma intensificação dos processos de exploração da força de trabalho, do meio ambiente, etc. Por que não conseguimos impedir esse processo?

O problema é que justamente as experiências sociais-democratas da Europa, por exemplo, e dos países progressistas da América Latina (AL) foram experiências talvez pós-neoliberais, mas não pós-capitalistas. Elas são dominadas ainda pela lógica do capitalismo, por muitas razões. Uma parte porque a potência do capitalismo internacional é muito grande e também porque todas as organizações econômicas internacionais estão a serviço da reprodução do capitalismo. E também porque os líderes novos que temos conhecido na AL não têm outra perspectiva que não seja uma modernização do capitalismo. Talvez com um vocabulário e um discurso muito anticapitalistas, anti-imperialistas, mas com políticas de fato de reprodução de outro tipo de capitalismo que pensam o sistema mais como uma norma social, mas que ainda assim é capitalismo.

O senhor disse em uma entrevista que o capitalismo monopolista vem dominando a economia da AL. Quais são as consequências disso para a concepção de desenvolvimento dos líderes políticos da região? Como fica a conexão entre esse projeto econômico e a política?

Essa concepção, na verdade, opera em todo o mundo, não só na AL. É que a concepção dos novos líderes políticos é ainda de neodesenvolvimentismo, sem uma visão crítica da modernização. Eles Adotaram uma visão acrítica da modernização. No Equador, por exemplo, isso é muito claro. O que fazemos é um capitalismo moderno. E esta ideia de modernização muito tecnocrata é uma modernidade muito afetada pela lógica do capital, e o que a desenvolveu foram as forças produtivas, mas pensando que isso seria a única via para um desenvolvimento de uma sociedade e de um país.

E essa concepção finalmente faz, como resultado, com que o papel da esquerda seja ajudar o capitalismo a se reproduzir em novas circunstâncias. Não é uma crítica fundamental à lógica do capitalismo. E o mesmo se passou com os países socialistas, ou seja, não é uma coisa só dos capitalistas. A União Soviética, por exemplo, adotou também de maneira acrítica esse conceito de modernidade, a partir de uma ideia de inesgotabilidade, mas a realidade é diferente disso, porque inclusive o progresso não é linear. É dialético, é cíclico, e a terra não é inesgotável. Assim, isso explica, por exemplo, por que a URSS destruiu a natureza ainda mais do que o capitalismo e por que na China o modelo de desenvolvimento é uma catástrofe ambiental.

Penso que esse conceito de modernizar a sociedade está associado à lógica do capital de exercer a lógica do valor de troca, e não do valor de uso. Um desenvolvimento para fazer crescer o lucro do capital, na verdade, porque o dogma é que o capital é o único motor da economia. Se quer fazer crescer a economia, é necessário favorecer a acumulação do capital. Isso me parece, talvez, até de maneira não consciente, mas é real. E isso é a base de concepção não só da maioria dos novos líderes da AL, mas também dos líderes de outras partes do mundo.

Leia a íntegra da entrevista aqui.

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