Foi-me solicitado um comentário à pesquisa “Percepções e valores políticos nas periferias de São Paulo”, de 2017, da Fundação Perseu Abramo (FPA). Tive acesso tão somente àquilo que foi exposto, em um power point, durante um debate na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo no dia 24 de maio deste ano. Fui convidado para esse debate na qualidade de sociólogo da religião e entendi que minha participação deveria se limitar ao tratamento dado à religião na referida pesquisa. Senti-me horado com o convite e aceitei-o de pronto, dados o reconhecimento e a respeitabilidade do trabalho da Fundação Perseu Abramo. Foi na intenção de cooperar com a ampliação das discussões que teci alguns comentários e que ousei pô-los por escrito.

Meus comentários, pois, à pesquisa:

Quem não vive numa das periferias da cidade de São Paulo, mas por alguma razão tem motivos para visitá-la com certa frequência e regularidade, não pode deixar de notar que a religião é absolutamente presente na paisagem física e cultural daqueles ambientes. A religião, na periferia, é valorada positivamente e goza, entre seus moradores, de prestígio e legitimidade inquestionáveis.

Nessa pesquisa da FPA sobre valores políticos presentes nas periferias de São Paulo chama a atenção a importância dada à religião quando o assunto é valores políticos. O que me leva a perguntar na sequência: por que esse destaque inusitado a esse tema? Desconfio que o interesse em incluir a “religião” nessa pesquisa está intimamente relacionado ao título do Eixo Temático III: “Religião e os limites do Estado Laico”. Portanto, é contra o pano de fundo das discussões sobre a laicidade do Estado que a religião é vista e analisada por essa pesquisa. Isso pode ser um problema à medida em que a religião não é vista como um valor em si mesma para essas populações periféricas, mas apenas enquanto permanece em relação com um Estado que se pretende laico, isto é, infenso e refratário a qualquer forma de injunção, aproximação ou diálogo com a religião.

Se se tem claro que as opções religiosas das pessoas obedecem a posicionamentos de classe ou estrato social, isto é: diferentes classes e estratos possuem diferentes formas de ver o mundo e, consequentemente, diferentes necessidades, interpretações, respostas e motivações para sua ação no mundo, logo é de se esperar que as religiões recompensem de diferentes maneiras os seus adeptos e convertidos. – “Algumas ideias religiosas mostram marcante afinidade com as necessidades e interpretações de alguns grupos, e pouca ou nenhuma afinidade com as de outros” (O’Dea, 1969:79) – então, se isso é sabido, a pergunta mais pertinente a se fazer à pesquisa em análise é: de que religião ela está falando? Uma resposta, um tanto genérica, poderia ser: sobre a religião ou religiões praticadas na periferia de São Paulo. E, mais especificamente, quais religiões seriam essas? Em termos estatísticos, considerando os dois últimos censos brasileiros, essas religiões seriam basicamente o catolicismo e o pentecostalismo. Dando um passo a mais, considerando o destaque dado àquilo que nela é chamado de “neopentecostalismo”, eu diria que essa pesquisa está focando o universo pentecostal, mais do que a “religião” mesma.

Há duas questões na pesquisa que merecem um olhar mais atento: o tal do “neopentecostalismo” que não é precisado em seu significado ou abrangência e o problema do Estado Laico que aparece a galope do fenômeno da candidatura dos líderes evangélicos a cargos políticos.

A rigor são poucas as igrejas que podem ser enquadradas sob a rubrica de neopentecostais: a Igreja Universal do Reino de Deus (IURD), a Igreja Internacional da Graça de Deus, a Igreja Renascer em Cristo, a Mundial do Poder de Deus, a Sara Nossa Terra e, finalmente a Bola de Neve Church. Aquilo que as identifica, a Teologia da Prosperidade e a Confissão Positiva, com maior ou menor presença e abrangência é visto aqui e ali em muitas outras igrejas pentecostais como, por exemplo, no Ministério Vitória em Cristo, de Silas Malafaia, pastor da Assembleia de Deus ou em diversas igrejas protestantes que se renderam ao movimento carismático. Vestígios dessas fórmulas teológicas também estão presentes em algumas das expressões da Renovação Carismática Católica. Em termos quantitativos, no entanto, essas igrejas nem de longe representam a maioria dos pentecostais no Brasil e muito menos nas periferias das grandes cidades.

Embora a pesquisa não tenha visto relevância na informação, é importante mencionar que, segundo o último censo demográfico, 57% dos pentecostais são negros (pretos e pardos) e 41% são brancos. Em outras palavras, o pentecostalismo no Brasil é majoritariamente uma religião de negros, embora “apenas” 15% dos negros brasileiros sejam pentecostais. Se se vai falar de pentecostalismo é necessário não desconhecer esse fato e crivar a análise também pela realidade e problemas que subjazem na questão racial. Se o pentecostalismo sofre algum preconceito por parte das elites brancas, esse preconceito acaba sendo potencializado pela cor da pele de seus adeptos.

A palavra “neopentecostalismo”, forjada e difundida a partir de estudos acadêmicos nos anos 80 para designar um ator emergente no campo religioso, acabou se tornando uma espécie de coringa conceitual para referenciar um conjunto de igrejas evangélicas de difícil enquadramento. Muitas igrejas pentecostais de origem mais recente são tidas por neopentecostais. No entanto, o resultado desse uso indiscriminado foi tornar mais obscuro o objeto de nossas pesquisas. As formas mais recentes de pentecostalismo somente poderiam ser classificadas como “neo” sob uma ampla licença poética-científica. Não há rigor analítico nessa forma de designar os novos pentecostalismos emergentes.

É óbvio e justificável que o interesse dessa pesquisa pelo pentecostalismo – ou pela religião, de forma mais ampla – esteja subsumido no interesse maior pela política. No entanto, o problema das relações entre religião e política é mais abrangente que a temática estrita do Estado Laico. A laicidade do Estado é apenas um viés, entre vários possíveis, que podem pautar a discussão. A opção por esse caminho não é gratuita, embora possa ser inconsciente. Se o parâmetro da discussão sobre a religião em geral e sobre o pentecostalismo em particular é a laicidade do Estado, a presença da religião e dos pentecostais na esfera pública será vista sempre de forma negativa e crítica. Elaborar o problema dessa maneira já define, de saída, os resultados dos questionamentos feitos à religião. No limite, se a crítica à presença da religião na esfera pública está focada no campo pentecostal, é necessário apontar para a possibilidade de que, indiretamente, essa crítica atinja justamente o segmento social que sempre foi mantido à margem da participação política nos espaços de cidadania. Essa crítica vai atingir a população composta pelos pretos, pobres e periféricos. Em outras palavras, criticar a presença da religião na esfera pública pode ser, no Brasil, uma crítica preconceituosa e racista.

Quando se fala em Estado Laico, aparentemente sabe-se do que se está falando. Fundamentalmente nos referimos à ideia da separação entre Igreja e Estado, ou entre religião e política. No entanto, não se conhece nenhuma experiência histórica onde isso tenha acontecido da maneira como o imaginário social mais letrado imagina. A laicidade clara e absoluta foi tentada em países de autoritarismo extremado como na Albânia dos tempos de Enver Hoxha. Em nenhum país onde predomina o modelo de democracia representativa, originada nas revoluções burguesas dos séculos XVII e XVIII houve essa separação idealizada. O que há, na verdade, são diferentes formas de acomodação das relações entre Igreja e Estado fundadas numa concordata de reconhecimento mútuo.

É bom que se saiba e se diga que o modelo de laicidade adotado no Brasil foi o modelo mais próximo da laïcité francesa. Esse é o modelo de laicidade radical, não concordatário, que imagina ser possível uma perfeita separação entre Estado e igrejas ou entre religião política. Mas, na França mesmo, esse modelo vem enfrentando sucessivas crises por causa da crescente presença muçulmana em seu território.

Na Inglaterra e nos países escandinavos, as igrejas Anglicana e Luterana são estatais e os cidadãos pertencem a elas por direito de nascimento. Apesar disso, são sociedades plurais, secularizadas e com democracias sedimentadas. Na Dinamarca, o Estado é o administrador direto da Igreja Luterana e paga o salário de todo o clero. Na Alemanha há um acordo de cooperação entre o Estado e as igrejas Luterana e Católica baseado no direito público e o Estado repassa para essas igrejas parte do imposto que recolhe dos cidadãos. Esses e outros casos de nações que professam uma fé religiosa, são exemplos de que democracia e laicidade não são necessariamente antagônicas. Há possibilidade de democracia em Estados confessionais. Além disso, são também exemplos de que Estado Laico só existe, na melhor das hipóteses, em termos conceituais na forma de um “tipo ideal” weberiano e, na pior das hipóteses, como uma bandeira levantada contra segmentos sociais que se quer ver longe da máquina estatal.

Nas discussões da laicidade, em especial aqui no Brasil, questionamos não apenas o financiamento público que eventualmente o Estado possa dar às igrejas na área da educação ou da saúde, mas também questionamos se a religião pode ou deve ocupar um lugar legítimo nos debates públicos de qualquer natureza. Não se concebe uma democracia onde não haja participação popular nos debates públicos, por isso qualquer restrição a essa participação será sempre um grande problema. No caso do Brasil atualmente, a elite intelectualizada, aqueles a quem a grande mídia gosta de chamar de “formadores de opinião”, acredita que a esfera pública possa ser erigida sobre um ideal de racionalidade no qual a religião não tem lugar porque os seus argumentos não são sujeitos à lógica e à evidência partilháveis entre os participantes.

Este é um grande problema para a democracia, pois ele diz respeito diretamente à extensão e à disponibilidade de um dos mais fundamentais direitos da cidadania que é a participação na esfera pública. Quem defende um estado laico ideal, supra histórico, fundado exclusivamente numa racionalidade também ideal e que, em função disso, gostaria de ver a religião alijada dos debates públicos, acaba promovendo o oposto daquilo que defende: a exclusão política de grandes contingentes da população.

O Secularismo se torna uma ideologia quando distorce os ideais do pensamento liberal originário. Como ideologia ele se recusa a reconhecer o papel e o lugar das organizações religiosas no ordenamento social e do Estado e imagina que a vida moderna e cosmopolita é uma espécie de “fuga da cultura para o reino da razão” no qual não há lugar para a religião. O Secularismo se torna uma ideologia quando pensa ser possível o olhar político sobre mundo sem a concorrência da forma particular como a religião o faz. O Estado Laico nestes casos se torna uma ideologia e uma bandeira a serviço de interesses de segmentos sociais, em geral da classe média branca mais receptiva às ideias secularizantes. O uso pode ser ideológico como, por exemplo em tempos atrás, foi a circunscrição à esfera privada de questões de gênero, como a violência doméstica, impedindo com isso a discussão de uma agenda pública para elas.

Não temos como negar que foi uma conquista da modernidade a partição da vida cotidiana em diferentes esferas relativamente autônomas garantindo a nós, pessoas cosmopolitas, uma liberdade nunca antes experimentada. A defesa do Estado Laico é fundamentalmente a defesa desse nosso modo de viver e conceber o mundo. No entanto, tal defesa não pode acontecer às custas de alijarmos os segmentos religiosos do debate público, pois isso representaria uma contradição nos termos daquilo que propomos como Estado democrático e como ideal de cidadania. Defender o Estado Laico como forma de combater a visão religiosa sobre, por exemplo, o aborto, a família e as questões de gênero, é um enorme engano porque isso significaria excluir dos debates a visão religiosa que é tão digna de se manifestar quanto qualquer outra.

Não é, pois, no nosso entendimento, procurando eliminar dos debates a presença do pensamento religioso que vamos avançar nas políticas públicas para a família e as questões de gênero. Gostando ou não, querendo ou não, a religião é parte constitutiva da cidadania e até mesmo dessa coisa que chamamos de Estado Moderno. O erro do pensamento liberal é levantar a bandeira da laicidade do Estado quando os assuntos em pauta são outros. Afirmar que o Estado é laico, toda vez que as igrejas se manifestam sobre os temas de seu interesse é uma tentativa, também autoritária, de se excluir os parceiros do debate. A religião, na verdade, nunca foi um assunto privado a não ser em termos ideais de um liberalismo político envelhecido e anacrônico.

Defendemos o Estado Laico justamente para que cada um possa ter a opinião que bem entender e possa discuti-la em público. A maior dificuldade está em construir um protocolo de conduta dialogal aceitável por todas as partes envolvidas. A presença dos religiosos na cena pública não é um problema de laicidade do Estado. Isso faz parte das nossas concepções do que seja um Estado Democrático. A dificuldade está em encontrar as bases comuns de discussão.

Referências

O’DEA, Thomas, Sociologia da Religião, São Paulo, Pioneira, 1969

CALHOUN, Craig, JUERGENSMEYER, Mark, VANANTWERPEN, Jonathan (Ed.), Rethinking secularismo, New York, 2011

GRITTI, Roberto, La politica del sacro: laicità, religione, fundamentalismi nel mondo globalizzato, Milano, Guerini e Associati, 2004

Edin Sued Abumanssur é professor especialista em Sociologia da Religião no Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião da PUC/SP