Brasília: um cadáver busca escapar da sepultura
Eles e elas chegaram de todo o Brasil, convocados pelas centrais sindicais, pelas frentes Brasil Popular e Povo sem Medo e pelos partidos de esquerda. Vieram para se manifestar contra a violência que tem marcado, há um ano, o assalto aos direitos dos trabalhadores consagrados na Constituição de 1988. Em particular contra a liquidação da Previdência Social que lhes garanta uma aposentadoria digna no fim da vida e contra a reforma trabalhista que remete as relações capital-trabalho para a etapa anterior à Lei Áurea.
Os trabalhadores do Brasil desembarcaram na capital do país, neste 24 de maio, para expressar seu inconformismo e afirmar sua cidadania. Uma vigorosa demonstração de apreço pela democracia e uma advertência aos que imaginam tratá-los como rebanhos sem consciência dos seus direitos, submetidos a poder de vara: haverá resposta contra o esbulho dos direitos conquistados.
O que vimos em Brasília, na tarde de 24 de maio de 2017, foi a exibição da truculência de um governo acuado por todos os lados, despido de todo resquício de legitimidade, contra uma manifestação democrática, anunciada há dias, preparada pelos setores organizados dos trabalhadores brasileiros. Desprovido de argumentos capazes de convencer a sociedade, o governo arreganha os dentes e mobiliza o mais conhecido instrumento que define as tiranias: a força bruta para vencer seus opositores pela intimidação. Brasília converteu-se na emblemática imagem do que ocorre no conjunto do país: um Estado policial.
Para alcançar aquele objetivo, o governo golpista produziu duas ações convergentes: desencadeou uma repressão brutal contra os manifestantes – incluindo aí um antigo expediente utilizado pela direita: a infiltração de agentes provocadores para desencadear distúrbios e quebra-quebras – e assim, sob a alegação de assegurar a Ordem Pública, legitimar a violência do Estado contra os cidadãos; e expediu um Decreto (GLO) autorizando a utilização das Forças Armadas de 24 a 31 de maio de 2017, numa tentativa canhestra de submeter a Capital da República ao Estado de Sítio enquanto são votadas no Congresso Nacional as reformas rejeitadas pela esmagadora maioria da população.
Problemas: a) o anúncio do Decreto feito pelo Sr. ministro da Defesa, Raul Jugmann, e pelo Gal. Sérgio Etchegoyen, do Gabinete de Segurança Institucional, teve como justificativa uma solicitação do Deputado Rodrigo Maia, Presidente da Câmara dos Deputados. O Presidente da Câmara veio imediatamente a público desmentir o Ministro e dizer que não havia feito tal pedido, que o Decreto era de inteira responsabilidade do Executivo; b) o Governador do Distrito Federal, Rodrigo Rollemberg também veio a público por meio de nota oficial afirmar que não foi informado previamente da emissão do Decreto, como determina o protocolo, e que a PMDF reúne plenamente as condições para garantir a ordem pública no Distrito Federal; c) o comandante do Exército, Gal. Vilas Boas, reiterou os termos da declaração do governador do DF e disse entender que a PMDF tem condições para assegurar a ordem pública na capital.
Em menos doze horas esse arreganho autoritário, esse simulacro que buscava conferir ares de legalidade ao arbítrio, ruiu sob o peso do próprio ridículo, da falta de credibilidade e da reação firme de diferentes setores sociais e políticos, mesmo aqueles que se identificaram com o golpe que produziu esse governo lamentável. Ficou reduzido à sua própria nudez: uma tentativa malsucedida de oferecer escudo protetor a um escroque que, de posse da faixa presidencial, conferida por um golpe parlamentar, judiciário e midiático pago com o generoso dinheiro da JBS, humilha a nação brasileira. E, para manter-se, tenta servir-se das instituições do Estado em favor de uma agenda antipopular e antinacional.
Os acontecimentos de 24 de maio revelam que os partidos e empresas que deram sustentação ao golpe de 2016 vivem um momento de impasse, sem unidade tática que oriente o próximo movimento. Os reais interesses que conduzem a calculada calamidade a que levaram o Brasil: os interesses financeiros, agrários, industriais e das petroleiras internacionais expressos diuturnamente pelos monopólios de comunicação encontram dificuldade para controlar o lumpen que, em seu nome, assumiu a operação da agenda de assalto aos direitos dos trabalhadores e aos interesses nacionais.
A presença da massa significativa de trabalhadores convocados pelos movimentos populares atesta que a resistência dos setores da base da sociedade, beneficiados pelas políticas sociais dos governos democráticos de Lula e Dilma, têm o condão de por em pânico a camarilha que sente o chão ceder sob seus pés. Não por acaso, o Brasil do governo golpista vem assistindo no último ano a cenas que mostram aos seus cidadãos e ao mundo como helicópteros da Polícia Militar lançam bombas de gás lacrimogêneo sobre multidões de cidadãos e cidadãs desarmados que se manifestam para reivindicar direitos garantidos na constituição.
O Brasil do governo Temer, sustentado pelo PSDB, PMDB, DEM e demais siglas auxiliares, levado à desmoralização por seus próprios delatores, nutrido pelo ódio de classe, vê emergir um Estado Policial que prefigura a substituição da política como forma de equacionar e resolver conflitos pela utilização bestial da força armada do Estado contra seus cidadãos.
Neste 24 de maio, as classes trabalhadoras deram um passo adiante na árdua disputa que se trava na sociedade brasileira em torno do conteúdo essencial da agenda golpista: a destruição dos direitos sociais assegurados na Constituição de 1988, a liquidação da Previdência Social e a abolição dos direitos trabalhistas com uma reforma que nos remete aos tempos da escravidão. A sociedade organizada, para além dos setores mais mobilizados, se dá conta de que foi lesada com o atropelo da soberania popular por meio do golpe e com a venda da soberania nacional em curso com a entrega das jazidas do pré-sal e da venda de terras a estrangeiros. Fica evidente que o Brasil se tornou ingovernável ao se romper o pacto constitucional de 1988, e não há saída duradoura para a crise em que as elites lançaram o país sem a participação popular por meio de Eleições Diretas Já!
*Pedro Tierra é poeta. Ex-presidente do Conselho Curador da Fundação Perseu Abramo