Em 2016, consumou-se o golpe de Estado que derrubou a presidenta legitimamente eleita. Articulados, o vice-presidente, a elite brasileira, setores do Judiciário, da mídia e a maioria do Congresso Nacional depuseram uma mulher contra a qual não pesava acusação alguma. Inegavelmente, o discurso do golpe é também machista, o que está atestado na abordagem de boa parte da mídia e nas intervenções de diversos parlamentares.

Hoje, essa essência está mais nítida do que nunca. A desvalorização do salário mínimo, o estrangulamento da Educação e da Saúde públicas, a reforma da Previdência, a reforma Trabalhista, tudo isso atinge de forma mais aguda as mulheres, mais ainda as negras. E mais: na gana de destruição do governo usurpador, fortalecem-se discursos e práticas conservadoras que visam  reverter avanços conquistados. O fim da Secretaria de Política para as Mulheres, e consequentemente, de diversos programas de combate à desigualdade que estavam em andamento, são demonstrativos desse quadro de horror.

Acontece que a democracia brasileira tem muito da luta das mulheres em sua essência. Reivindicações por mais direitos e igualdade só podem ser respondidas em ambientes democráticos.
No final dos anos 1970, quando os questionamentos ao regime militar começaram a ganhar força e a abertura política se apontava no horizonte, foram as mulheres as protagonistas das primeiras manifestações públicas contra o governo autoritário desde o seu endurecimento. O Movimento Contra a Carestia surgiu nas periferias das grandes cidades, e era liderado por mulheres donas de casa, das associações de bairro, clubes de mães e das comunidades eclesiais de base, que sentiam na pele e na mesa de suas casas que a economia do governo autoritário ia de mal a pior.

A redemocratização é produto também do fortalecimento das mulheres enquanto sujeito político coletivo. Não só pelas lutas travadas em oposição à ditadura, mas também pelas disputas levadas à cabo no próprio processo de abertura. A Constituição de 1988 é um exemplo disso. A partir dali, abriram-se espaços para a criação dos mecanismos de cotas em direções partidárias, sindicais e chapas para eleição de deputados (as). Lembremos que causou profundo estranhamento em toda a comunidade internacional que o Ministério do governo golpista foi composto sem sequer uma mulher.

A ação das mulheres altera a própria concepção de Estado, alargando a democracia. Por muito tempo, prevaleceu a ideia de que “em briga de marido e mulher, não se mete a colher”; e que eventos do ambiente doméstico não devem ser tratados politicamente. Isso quer dizer que, para assegurar o direito a uma vida sem violência, foi necessário desafiar o padrão de ação do Estado.

Eram as mulheres rejeitando a separação e hierarquização dos espaços público e privado, que tanto as oprimia. Somente alterando aquela concepção foram possíveis os avanços que tomaram lugar desde a redemocratização até chegar à Lei Maria da Penha. E nós sabemos que ainda há muito o que avançar.

Quando o Estado compreende que o combate à desigualdade é sim um problema seu, muitas portas se abrem para novas e mais avançadas concepções de cidadania e de democracia. A demanda por direitos, ações afirmativas e políticas públicas transforma a relação Estado-sociedade como um todo. O mundo melhora quando a luta das mulheres prospera. E fica a lição: as mulheres nunca se acovardaram diante da luta em defesa da democracia!

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