“Ora, se ninguém pode passar vinte e quatro horas sem mergulhar no universo da ficção e da poesia, a literatura concebida no sentido amplo a que me referi parece corresponder a uma necessidade universal, que precisa ser satisfeita e cuja satisfação constitui um direito”.
(Antonio Candido, “Direito à Literatura”)

Muitas são as existências que podem inspirar a escrita, seja ela política ou literária. A tentativa deste texto é homenagear de modo simples a existência e importância política e literária do Professor e pensador Antonio Candido, como singela inscrição de memória que permanece no tempo.

Na Grécia Antiga, a memória, personificada na deusa titânide Mnemosyne, tinha valor fundamental. Em uma sociedade oral como aquela, a memória tinha central importância, posto que por ela garantia-se a transmissão de costumes, o conhecimento sobre o ancestral e o mítico, além de garantir ordenamento e expressar uma visão de mundo. Mas outra figura se fazia imprescindível naquele contexto: a do poeta. Inspirado pelas musas, o poeta estabelecia relação e acesso à memória sagrada e mítica, sendo a partir do canto e da poesia a expressão fundamental de ordenação social daquelas sociedades.

Antonio Candido, em seu célebre texto “Direito à Literatura” apontou este sempre papel central da literatura em diversas sociedades: “(…) a literatura aparece claramente como manifestação universal de todos os homens em todos os tempos. Não há povo e não há homem que possa viver sem ela, isto é, sem a possibilidade de entrar em contato com alguma espécie de fabulação. (…) Ela se manifesta desde o devaneio amoroso ou econômico no ônibus até a atenção fixada na novela de televisão ou na leitura seguida de um romance. Ora, se ninguém pode passar vinte e quatro horas sem mergulhar no universo da ficção e da poesia, a literatura concebida no sentido amplo a que me referi parece corresponder a uma necessidade universal, que precisa ser satisfeita e cuja satisfação constitui um direito” (2004). Ao ler este trecho, no meu primeiro ano de Faculdade de Letras, aprendi que Literatura não se tratava, como é maçiçamente expressa na sociedade, de artigo de perfumaria e que meu gosto e escolha acadêmica até então, por ser potência de sonho, é um direito básico do humano. Mas, além disso, por ter esta potência de sonho, a literatura era, também, potência de transformação. “A respeito destes dois lados da literatura, convém lembrar que ela não é uma experiência inofensiva, mas uma aventura que pode causar problemas psíquicos e morais, como acontece com a própria vida, da qual é imagem e transfiguração. Isto significa que ela tem papel formador da personalidade, mas não segundo as convenções; seria antes segundo a força indiscriminada e poderosa da própria realidade. Por isso, nas mãos do leitor, o livro pode ser fator de perturbação e mesmo de risco” (2004).

O professor, crítico literário e pensador político tem papel fundamental na elevação da Literatura brasileira também como um “sistema simbólico”, que estabelece relação dinâmica com o que somos e o que queremos ser enquanto sociedade. Para ele, a literatura era o meio pelo “qual as veleidades mais profundas do indivíduo se transformam em elementos de contato entre os homens, e de interpretação das diferentes esferas da realidade” (2009). Antonio Candido ponderava, contudo, em como estabelecer esta constante relação entre literatura e sociedade, entre o escrito fabuloso e a realidade. Em “O Discurso e a Cidade”, o intelectual propôs, em sua visão como o crítico literário deveria dosar esta relação em sua análise do texto, seja sem jamais perder a perspectiva histórico-sociológica, seja sem jamais perder de vista o seu objeto de análise que detém complexidades e a fábula, o sonho e a criatividade como elementos constitutivos. A narrativa neste sentido “se constitui a partir de materiais não literários, manipulados a fim de se tornarem aspectos de uma organização estética regida pelas suas próprias leis, não as da natureza, da sociedade ou do ser”. No entanto, cabe o crítico “averiguar quais foram os recursos utilizados para criar a impressão de verdade”, ou seja, “mostrar como o recado do escritor se constrói a partir do mundo, mas gera um mundo novo, cujas leis fazem sentir melhor a realidade originária”, mas que este exercício, portanto, não pode prescindir de que o interesse literário se dá pelo “ponto de chegada (o texto)” (2004).

Esta relação entre literatura e sociedade é uma constante na obra do crítico literário. Com Antonio Candido, aprendemos mais do que apenas a beleza estética pura e simplesmente, mas que a estética jamais prescinde do social, ela é também um construto social, mas não apenas isso, “ela é ela” (2011). Mas, além disso, aprendemos que o lado político e militante jamais pode ser renunciado, de que não podemos dispensar jamais nosso posicionamento. Em uma de suas últimas entrevistas, Antonio Candido seguia um pulsante militante de esquerda e socialista, defendendo o “Socialismo como uma doutrina triunfante”. Afirmou, portanto, que o “socialismo é uma finalidade sem fim” e que era preciso perseguirmos todos os dias esta ideia, construí-la, desmistificá-la, afim de melhorar nossa realidade e futuro. Sendo o capitalismo totalmente desumanizado, todos os avanços e melhorias de vida das pessoas, segundo Candido, partiram de lutas socialistas. “O que se pensa que é face humana do capitalismo é o que o socialismo arrancou dele com suor, lágrimas e sangue. Hoje é normal o operário trabalhar oito horas, ter férias… tudo é conquista do socialismo” (2011).

Com Antonio Candido aprendemos que a relação interna e externa é uma constante dinâmica, imprescindível para se levar em conta tanto na análise de reflexão literária quanto na ação política militante. E que a Literatura é um instrumento mais potente do que imaginamos pelo estímulo que tem de potencializar sonhos.

Uma poeta portuguesa contemporânea, Matilde Campilho, afirmou faz pouco algo como “a literatura pode não mudar o mundo, mas muda o minuto”. Para Antonio Candido, “(a literatura) não corrompe nem edifica, portanto; mas trazendo livremente em si o que chamamos o bem e o que chamamos o mal, humaniza em sentido profundo, porque faz viver”. E se faz viver, faz sonhar. E são sonhos que potencializam transformações.

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