Um dia em Curitiba: aquele ali sou eu
É fascinante tentar entender porque as pessoas são de esquerda. Por argumentos racionais, materialistas históricos, religiosos, por sofrer opressão, há sempre um elemento em comum: um incômodo com o mundo. Mesmo nos maiores momentos da história do Brasil, sempre faltava alguma coisa. Havia sempre uma desigualdade a ser combatida, uma violência acontecendo em alguma esquina. E aí, entendemos que o fascínio por buscar a compreensão das razões que levam as pessoas a tentar transformar a sociedade, ganha uma outra pergunta: por que as pessoas continuam insistindo?
Ser de esquerda hoje no Brasil é um ato de resistência, de insistência. Estamos cansados, machucados e tristes por percebermos que nosso incômodo infelizmente está aumentando. Porque aquele pouquinho de alívio que tivemos passou, e a escuridão parece querer voltar.
A verdade é que o dia 10 de maio de 2017 nos contou um segredo que estava escondido. Ainda existem segredos escondidos. Não importa o que aconteça, tentar enxergar o mundo com os olhos das outras pessoas ainda continua sendo possível. Trabalhadores, trabalhadoras, do campo e da cidade, jovens, crianças, idosos, militantes do MST, da CUT, de muitos movimentos sociais, uma verdadeira multidão de todas as cores e origens que se podia pensar, juntos para defender a democracia.
O ponto de encontro era um acampamento entre a linha férrea e a rodoviária de Curitiba. Cheguei no início da manhã, e vi aquelas pessoas despertando de uma noite fria, num terreno de terra batida, tendo dormido em grandes barracas de madeira cobertas com uma lona preta ou em pequenas barracas daquelas de montar. Dali saíam famílias inteiras, saíam pontos de distribuição de alimentação, de café com leite. Saíam camisetas, bonés, bandeiras. Mas dali eu vi também saírem olhares de muita consciência do momento que estamos vivendo.
O que faz uma pessoa dormir no frio, viajar horas, até dias, e ainda ficar nove horas numa praça, em uma vigília política, em compasso de espera por um homem que é réu num processo criminal? O que faz milhares de pessoas fazerem isso?
Quando saímos em caminhada do acampamento em direção à praça da democracia, rapidamente apareceram dois sertanejos, que subiram num caminhão de som e cantaram as cantigas do MST. Músicas que falam de sonhos e luta, que constroem a união dos trabalhadores do campo e da cidade, que explicam a importância da terra, e que, de forma muito carinhosa, esquentaram o coração de toda gente naquele clima frio.
Muitos estabelecimentos comerciais fecharam suas portas no caminho. Desnecessário. Muitos motoristas ficaram indignados com os quinze minutos de trânsito parado para a multidão poder passar. Mas também encontramos apoio, travestidos de sorrisos e buzinas. A multidão que tomou conta da cidade, negou a construção criminosa da grande mídia, marchou em paz, e coloriu a cidade durante todo o dia.
Do outro lado de Curitiba, a cidade que a direita nativa apelidou de “República”, outra multidão de trabalhadores, fardados estavam ali, guardando, de forma também desnecessária, um poder e um juiz despreocupados com leis e o Estado de Direito, que nos desdenhava. Assistiram atônitos o réu entrar caminhando, no meio de pessoas que o abraçavam, que queriam tocá-lo. É impossível assistir tudo isso e passar incólume.
Um dia para a história. Aqueles ali somos nós.