Ao longo dos últimos anos, temos acompanhado diversos debates e ações sobre a opressão de gênero nos espaços público e privado. Não nos cabe aqui fazer uma retrospectiva histórica da militância feminista nas últimas décadas, mas sim, optar por um recorte específico, até agora pouco considerado. Tentaremos apontar como o assédio opera no campo artístico, em específico, no meio teatral, levando em consideração recentes denúncias de abuso.

Essencialmente, o teatro é uma arte que tem o corpo (compreendido em sua dimensão físico e afetiva) e a subjetividade como suporte. Rompendo com as normatizações do movimento e as couraças psicofísicas individuais, as artes cênicas propõem uma relação mais íntima entre o indivíduo e sua matéria (ossos, fluídos, órgãos, músculos, princípios, ativos, sensações), redimensionando-a para além dos comportamentos socialmente “adequados”.

Porém, tal proposição libertadora, às vezes, esbarra em posturas e episódios de forte viés sexista. Tanto em esfera local quanto internacional, acompanhamos diversos casos de abusos socialmente autorizados e relevados. Quem não se lembra do ator Casey Affleck, que mesmo com inúmeras denúncias de agressão sexual, ganhou o Oscar desse ano (Melhor Ator)? Ou ainda do estupro real e sem punição de Maria Schneider em o Último Tango em Paris? Aqui, as defesas se alternam entre a busca por um suposto “profissionalismo” (separando ilusoriamente o cidadão do artista) e a supremacia da “estética”, da obra de arte que tudo consome e arrasta (como se a qualidade do resultado justificasse a barbaridade do processo).

Se pensarmos na dimensão local, a situação não apresenta tantas mudanças. É fato que, em geral, os depoimentos não implicam em agressões extremas ou posturas explicitamente machistas. Essa realidade, porém, não minimiza a perversidade dos casos, uma vez que a Lei Maria da Penha abarca tanto as violências físicas quanto psicológicas. Essa última, sem dúvida, mais difícil de ser reconhecida e relatada pela vítima (além de, muitas vezes, ser posta em xeque pelos envolvidos).

Sendo assim, torna-se urgente compreender e combater o machismo enquanto estrutura sistêmica presente, inclusive, nos espaços críticos e sensíveis, e não menosprezar suas formas de atuação: silenciamento feminino, relações sexuais abusivas, jogos de poder desmedidos. Se a conjuntura e a luta contra o desmonte da cultura pedem coesão imediata da classe artística, a revisão interna das pautas e comportamentos faz-se mais urgente do que nunca; uma vez que nenhum avanço é real, se a violência contra a mulher ainda for presente.

*Esse texto baseia-se na denúncia feita nessa quinta-feira, dia 12 de maio de 2017, pela dramaturga Heloísa Cardoso. Saiba mais aqui