Cuzco, no Peru, é uma cidade inesquecível. Seja através das páginas do diário de Che Guevara, seja passeando pelas ruas de pedra, percebemos a sobreposição de tempos e narrativas. Cada edifício, muro, praça respira um período histórico distinto e antagônico. Ali, resquícios do Império Inca contrastam com igrejas católicas e um recém-inaugurado Mac Donald. Em cima de templos pré-colombianos, cruzes pesadas e agências de turismo convivem de forma incômoda.

É sabido: para conquistar uma cidade não basta sitiar seu território. É preciso destruir sua cultura local – ícones, espaços de adoração, pontos de convivência, redes afetivas, enfim, seu imaginário. Tal processo pode ocorrer através da apropriação simbólica ou ainda via pilhagem (derrubada de edifícios, incêndios, etc). Suas particularidades e êxito dependem diretamente do contexto inserido, da proeza dos dominadores e da mobilização dos afetados.

Em Cuzco, vemos que esse projeto foi posto em prática em termos de arquitetura e estética citadina, porém foi substancialmente fracassado. A malha urbana do município é riscada com fissuras, brechas e abismos, evidenciando a não-hegemonia ocidental.
E o que tem isso a ver com São Paulo? Seria possível fazer uma correlação com as políticas higienistas do prefeito João Dória?
Desde janeiro, acompanhamos uma sequência de ataques e perseguições à grafiteiros e pichadores da capital paulista, começando pelo apagamento do mural da Avenida 23 Março.

Protegido pelo ideário de uma “cidade linda”, Dória vem lançando liminares de criminalização do pixo e de endurecimento do governo, chegando a envolver o Deic (Departamento Estadual de Investigações Criminosas) nas investigações.

Em fevereiro, o artista plástico Iaco (conhecido por sua tag em letra cursiva) foi tirado de casa e conduzido à delegacia para prestar depoimento: um extenso relatório tentaria enquadrá-lo em “associação criminosa”. Para os mais atentos, o episódio remete aos cerceamentos da liberdade de expressão da década de 1970.

Na semana passada, um dos moradores do Beco do Batman pintou seu muro externo de cinza. Aqui, as contradições são maiores, uma vez que a iniciativa veio do proprietário do imóvel e não do prefeito. Reivindicando mais segurança e tranquilidade para o quarteirão, o senhor de setenta anos parecia, até então, adepto dos grafites. A repercussão do fato (inclusive o contato do subprefeito de Pinheiros) parece tê-lo feito voltar atrás. Afinal, o Beco é um atrativo turístico na rota gourmet da Vila Madalena.

Porém uma inquietação ronda essa retrospectiva. Estará o ideário da cidade limpa chegando de fato no comportamento individual? O que representa uma cidade lisa, sem pixos, lambes-lambes, estêncils?

Retomemos o caso de Cuzco. Da mesma forma que os colonizadores queimavam as torres incas a fim de firmar a supremacia hispânica, os agentes municipais anulam os traços de spray e identificam os street-artistas como delinquentes. Em ambos os casos, a autoridade disputa e legitima o poder através do campo estético. Ao usar o termo “lindo”, constrói-se um ideário de harmonia, limpeza e tranquilidade, no qual o que é transgressor, incômodo ou reivindicatório não cabe.

Porém, não é assim que a cidade respira: com uma desigualdade avassaladora, São Paulo se divide entre o lado de cá e o lado de lá da ponte. O pixo é reflexo desse abismo econômico, nascendo como uma reivindicação legítima e radical por espaços de existência.

Atravessando viadutos, cruzando limites, arriscando os corpos, o pixo não é para ser agradável, não é para pertencer às exuberantes galerias de arte; pelo contrário, é uma ação, uma conduta que cria outras dramaturgias e narrativas sociais – inscrições essas que incomodam a visão simplificadora do mandatário e parecem gritar sobre a irrealidade da “beleza” burguesa. Num município em que o descaso estatal precariza diversos bairros, a quem serve o “bom-gosto”, as paredes limpas, as janelas envidraçadas, os nomes em inglês?

Dessa maneira, a “guerra” contra o pixo acaba assumindo um caráter maior do que a cor cinza: o que está em discussão é o acesso e o direito à cidade. E tal qual no “umbigo do mundo”, mesmo que todos os templos sejam devastados, as calçadas transbordarão os resquícios da disputa e da resistência dos territórios simbólicos.

Luiza Romão é poetisa e atriz.

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