Uma menina entra na adolescência, descobre a paixão e se encanta por um garoto. A conversa entre eles se inicia calma e corriqueira, como para qualquer outra menina. Em poucos dias, os garotos da escola a rotulam de “fácil” e ela passa a ter dificuldade de diferenciar o que os outros pensam dela, do que ela realmente é. Uma outra garota começa uma relação com um homem e em poucos dias ela mal consegue expressar seus pensamentos e sentimentos, sendo sempre interpelada por ele. Para cada vez que abre a boca, escuta seu nome repetido à exaustão. Às vezes, ele usa a força, o dedo em riste e domina seu corpo até que ela pare de falar.

Essas cenas fazem parte dos programas que tomaram o debate nas redes sociais nos últimos dias. A primeira compõe uma série produzida exclusivamente para a internet (13 Reasons Why), a segunda apareceu na maior rede de televisão brasileira (Big Brother Brasil 2017). Mas qualquer uma das duas, de fato, pode ser a história de milhares de mulheres e meninas no mundo todo.

As mulheres vivem em guerra com a sina que o mundo lhes reserva. A moral que circunda a vida tenta nos diferenciar entre santas e profanas para justamente manter sobre nós os olhares atentos de quem quer que seja. Essa diferenciação torna possível retirar a autonomia das mulheres transferindo a validação de seus comportamentos ao escrutínio geral, mas principalmente o dos homens. A cassação constante da autonomia das mulheres em tomar decisões sobre as próprias vidas abriga uma série de comportamentos que autorizam os homens a reproduzir a hierarquia de poder, segundo a qual eles detêm o poder da fala, da formulação, do pensamento.

Ainda que seja possível inserir esses comportamentos num sistema maior de hierarquização entre mulheres e homens, é bem verdade que esse mesmo sistema passa por mudanças constantes. Não sem luta, é claro. A força do movimento de mulheres sempre questionou padrões de comportamento, leis e mentalidades, bem como seus efeitos patriarcais. Para confirmar isso, basta um olhar atento às lutas pelo direito ao voto, pelos direitos trabalhistas e acesso à renda nos últimos cem anos, no Brasil e no mundo.

O esforço conservador de diminuir a grandiosidade do movimento feminista e a organização política das mulheres é um dos motivos que justifica a denúncia constante dessa opressão. O movimento peculiar às redes sociais fornece uma base para se pensar o vigor das queixas sobre como a televisão ainda é parte do sistema que perpetua as relações desiguais entre os sexos.
Os dias que se seguiram à denúncia de uma figurinista sobre o assédio de um famoso ator da Rede Globo ainda foram repletos de pressão por meio de tags que exigiam da emissora uma mudança consistente naquilo que transmite. Para se ter uma ideia, apenas 5% dos participantes do debate online realmente acreditavam que nada precisava ser feito (Fonte: Análise FPA).

O retrato das mulheres no cinema, na TV e até mesmo nas artes precisa mesmo ser redesenhado. Estupro, violência e subserviência parecem ser temas ainda preferidos por essas formas de arte e entretenimento. O mesmo ocorre com o impacto de notícias como as dos últimos dias. O assédio, não sem motivo, causa intensa revolta que impulsiona as pessoas à tomada de posição, à denúncia e ao movimento de se pronunciar nas redes sociais.

Por outro lado, as manifestas expressões da hierarquia entre mulheres e homens no cotidiano dificilmente ganham o mesmo impacto. A meritocracia, a ideia de que a conquista de bens, de renda e de autonomia dependem exclusivamente de esforços pessoais, funcionam como uma espécie de obstáculo à indignação perante a desigualdade entre os sexos. A diferença de renda entre mulheres e homens alterou muito pouco desde o começo do século 20: era de 40%, e em 2009 se contava 30%. O trabalho de cuidados da casa e da família permanece quase exclusivamente à cargo das mulheres sem receber o devido valor. A maternidade pode funcionar até mesmo como um problema para todo tipo de trabalhadora, ainda mais em tempos de ataques ilegítimos aos direitos trabalhistas. Essa indignação seletiva tem também um forte marcador racial. As redes sociais recebem com muito mais adesão as denúncias de humilhação sofridas pelas trabalhadoras domésticas (mais de 60% delas são mulheres negras), mas dão menor atenção às conquistas obtidas pela categoria organizada.

As organizações coletivas, políticas e autônomas de mulheres movimentam bem menos a comoção pública sendo que elas são condições essenciais para a mudança estrutural da sociedade. As relações desiguais de sexo fazem parte da engrenagem de um mundo racista e extremamente injusto. Para dar fim a esse mundo é fundamental comunicar nossas autonomias, efeito mais libertador do que a reiteração constante da situação de vítima.
As mulheres vivem em guerra com sua própria sina e isso também quer dizer que são sujeitas da própria história.

Glaucia Fraccaro. Historiadora, é Doutora em História Social do Trabalho pela UNICAMP e professora da Faculdade de História da PUC-Campinas.

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