Luta de classes na Era da Depressão
“Quando nós, mulheres negras, experimentamos a força transformadora do amor em nossas vidas, assumimos atitudes capazes de alterar completamente as estruturas sociais existentes. Assim poderemos acumular forças para enfrentar o genocídio que mata diariamente tantos homens, mulheres e crianças negras. Quando conhecemos o amor, quando amamos, é possível enxergar o passado com outros olhos; é possível transformar o presente e sonhar o futuro. Esse é o poder do amor. O amor cura.” – Vivendo de Amor (Bell Hooks)
Não preciso entender muito de psicanálise para perceber que vivemos uma Era da Depressão. Sim, nossa sociedade doente está adoecendo os corpos e as subjetividades das pessoas. Sobretudo das mulheres, sobretudo do povo negro e, principalmente, da juventude. No outro dia, eu estava em uma roda de conversa sobre feminismo e auto-cuidado e pedi para quem nunca tivesse tido a famosa “crise de ansiedade” que levantasse a mão. A cena foi assustadora: ninguém levantou.
Vamos aos diagnósticos e para isso é preciso uma análise “clínica” focada na anatomia sociocultural de nosso tempo histórico. Quem são estes sujeitos adoecidos? O que tanto nos adoece? Tenho algumas hipóteses. A primeira e óbvia é que nossa vida não está nada fácil. Falo como mulher negra, jovem, nordestina, que luta para encontrar um lugar neste século, diante da tão árdua e primordial tarefa de sobreviver. Sim, veja, estar viva é artigo de luxo em nossa sociedade, em nosso país, pois ele é genocida. Sim, seus equipamentos e todo o emaranhado de signos que costuram a cultura e o imaginário social são feitos para nos matar e nos enterrar como indigentes na história. Nossos restos mortais viram letras manchadas de sangue nas páginas dos jornais que limpam as fezes superfaturadas dos oligarcas da comunicação.
Esse é o primeiro dado objetivo: as violências institucionalizadas marcam nossos corpos, levam nossas vidas e não teriam como não afetar inescrupulosamente as nossas subjetividades. Violência é cotidiano para nós mulheres. Vivemos em estado de exceção dentro de nossos próprios corpos desde que nascemos. Somos vilipendiadas pelo patriarcado da forma mais cruel e discreta, pois as lentes do discernimento estão embaçadas pela nuvem das relações de poder, e o nosso limpador de para-brisa já está pra lá de cansado e maltratado. Mesmo assim não desistimos e seguimos. Driblando os estupros, o assédio ininterrupto, a clandestinidade das escolhas mais íntimas, a criminalização, o isolamento político, o silenciamento, os tapas, as dores, os remédios, as tentativas de nos dizer que somos loucas por querermos ser quem queremos ser: pessoas livres.
Preciso também falar da solidão. Para nós, mulheres negras, não há materialismo histórico que esteja completo se não der conta deste elemento que nos corrói a vida. Recentemente, tive a oportunidade de mergulhar a fundo na história das Mães de Maio, movimento de mães que perderam seus filhos para a violência policial e que lutam por um novo sistema de segurança, justiça, e, mais ainda, pela memória dos mortos e pelo direito à vida dos vivos.
Muita gente conhece e reconhece a garra destas mulheres que vão para a frente dos camburões e enfrentam de peito aberto as balas de canhão para afirmar a dignidade inabalável de seu povo. O que quase ninguém sabe é o quão solitárias são estas mulheres. Que a maioria delas é abandonada pelos seus maridos depois que perdem seus filhos e arrebatada por um profundo isolamento social, pois, como elas mesmas me disseram, quase ninguém suporta a amargura que elas levam consigo durante o luto. Quase ninguém sabe que estas mulheres adquirem câncer e enfrentam sozinhas a dor da perda, o medo da morte, os desafios de manter uma família durante o luto, o constrangimento violador da Justiça, que força estas mulheres ter que provar “por a mais b” que seus filhos não mereciam morrer, que no Brasil não tem pena de morte, ou não deveria ter. Estas mulheres, assim como eu e você, também precisam ser amadas e isso precisa deixar de ser um não-assunto na luta de classes.
A juventude também padece destas psicopatologias que todo dia a ciência arruma um termo diferente para classificar e medicar. A indústria farmacêutica solta fogos, o narcotráfico diz amém, a polícia diz também e a indústria cultural se apropria da narrativa suicida para vender a viabilidade econômica do futuro. Num mundo extremamente monetarizado, com uma riqueza extremamente concentrada e um contingente populacional revoltado em busca de um lugar ao sol. Uma massa precarizada e amontoada nos conglomerados de cimento das grandes cidades cinzentas é, para os detentores do poder, como uma “bomba relógio prestes a explodir”. Por isso é melhor mesmo que estes jovens indecisos, angustiados com as incertezas de nosso tempo, se joguem de pontes, cortem seus pulsos, se entupam de remédios e morram solitários, pois neste mundo não haverá mesmo espaço para nós.
Nós, quem somos nós? Esses e essas jovens espremidas pelo nó da história? O nó social de quem viveu uma época de avanços sociais e reposicionamento da correlação mundial, a partir da emergência de regimes democráticos de governos que garantiram um mínimo de políticas públicas para a seguridade social, e agora vê tudo desmoronar diante de um golpe articulado pelo poder econômico. O nó político do esgotamento de nossas ferramentas históricas de luta e das enormes dificuldades de sistematização de novas diretrizes organizativas para nosso povo e nossa classe trabalhadora. Um nó tecnológico de termos nascido sob a sombra de uma vida analógica e, rapidamente, arremessados e arremessadas pela fugacidade da era digital. Ao mesmo tempo que nos abre mil possibilidades de ser e estar no mundo, ela nos envolve em uma velocidade humanamente inalcançável, com uma cobrança desleal de opiniões, posicionamentos, símbolos, posturas, algoritmos de uma vida desintegrada em pixels e códigos em busca desenfreada de respostas para perguntas as quais ainda nem compreendemos as origens.
Eu não sou uma pessimista da era digital. Ao contrário, sou uma entusiasta e acredito que a luta de classes precisará dominar os equipamentos que programam o planeta, ou estaremos fora do páreo com o nosso inimigo central: o capitalismo. Mas a verdade é que essa parafernália sociotecnocrata vem contribuindo também, e muito, para o nosso adoecimento psicológico, e isso precisa ser discutido. Sem maniqueísmo, sem paixões infantis por uma ou outra visão ortodoxa, com o cuidado de compreender teorias da informação, mas também com sensibilidade para observar o dia a dia. Nossa tarefa é produzir sínteses, achar caminhos, buscar alternativas para que um potencial instrumento de luta não se transforme em ferramenta de nossa própria auto-sabotagem.
Quero voltar à pergunta título que deu início a minha coluna-cheia-de-hérnia-de-disco. Como, no meio destas dores intensas, desta insustentável dureza de viver, conseguiremos nos organizar politicamente? Como nos manteremos firmes e fortes na batalha por um mundo melhor, derrubar Michel Temer, pensar uma alternativa para 2018, enfrentar todos os processos pragmáticos da Real Politik, ter condições de elaborar, formular o programa de revolução que nos guiará nas próximas décadas na guerra contra o neoliberalismo? Sinceramente, eu não sei, e não saber me adoece ainda mais. Mas tenho algumas pistas.
A política precisa incorporar mais o jeito do povo negro e das mulheres de fazer política. E, aqui, nem estou falando dos movimentos organizados e reconhecidos, embora também não os exclua deste exemplo. Meu foco, entretanto, é num mergulho profundo sobre as formas de sobrevivência do povo brasileiro, que tem em suas raízes os povos escravizados vindos de África, que sobreviveram e conseguiram se manter alegres e soberanos, mesmo sendo alvo do maior laboratório de crimes da humanidade: a escravidão. E ressalto o papel das mulheres como central na construção dos laços que fizeram este povo atravessar os séculos de martírio e chegar até aqui onde estamos, lutando bravamente pela permanência na face da Terra.
A política das mulheres negras é a política do cuidado, da proteção. Quem tem mãe preta sabe do que estou falando: não é subjetivo. Este amor das mulheres, sobretudo das mulheres negras, é uma cultura política transversal a todas as práticas e costumes que orientam seu proceder social. As instituições políticas precisam do protagonismo destas mulheres para que possam transformar suas estruturas frias, meritocráticas, marcadas pelos valores e métodos eurocêntricos e masculinos de organização social, em quilombos de cuidado e proteção dos guerreiros e guerreiras que sustentam o cabo de forças da luta de classes no Brasil e no mundo.
A política masculina e embranquecida muitas vezes atinge a nossos corpos, enquanto mulheres, negros e jovens, de uma forma muito perniciosa. Nos desumaniza, nos embrutece. A dureza da vida também faz isso conosco todo o tempo, e precisamos compreender o amor como um exercício revolucionário, contra-hegemônico à cultura de ódio, de competição, de matança imposta pelo capitalismo, pelo racismo, pelo patriarcado. Mas não estou falando aqui de atitudes individuais, posturas pontuais: estou falando da sistematização desta dimensão da luta de classes nos marcos organizativos de nossa luta política diária. Ou não resistiremos, sucumbiremos ao suicídio, às armadilhas do capitalismo, à sistemática anestesia social dos ansiolíticos e antidepressivos.
Leiam Vivendo de Amor de Bell Hooks (link), marquem uma reunião com a sua organização política e pensem em como cuidar umas das outras, uns dos outros. Chorem juntos e juntas até a dor semanal extravasar total; façam isso de novo na semana que vem. Saiam para se divertir juntos ao menos uma vez no mês para lembrar e se convencer mais uma vez de que lutar vale a pena pois vocês já são a chama da transformação, são agentes de amor, empatia e igualdade. Sem isso, não chegaremos onde planejamos chegar. Não chegaremos vivas.