Durante séculos a agricultura familiar brasileira foi condenada a uma invisibilidade criminosa. A propaganda e o discurso dos latifundiários, transformados em verdade absoluta pelos formadores de opinião, afirmavam que no meio rural brasileiro só os grandes produziam para valer. O resto era o resto: pobreza atrasada, incapaz de produzir sequer para o autoconsumo. Evidente que essa não era uma manobra ingênua. Este tipo de visão, aceita pela grande maioria da sociedade brasileira, sempre foi o terreno fértil para a concentração fundiária crescente e o direcionamento quase absoluto do crédito e dos recursos e políticas públicas para os grandes proprietários rurais. Era uma visão – quase uma ideologia – que idolatrava a falsa modernidade dos grandes e desprezava o conhecimento e a produção dos agricultores familiares. Isso quando não criminalizava as ações dos sem-terra e virava as costas para os direitos das populações tradicionais.

Este cenário começou a mudar no início de 2003, no primeiro governo do Presidente Lula. Há quem diga que foi a partir de então que o termo Agricultura Familiar passou a fazer parte do vocabulário nacional. A valorização e reorganização do Pronaf junto com um conjunto de novos programas de Assistência Técnica, Seguro Agrícola (de clima e de preços), Mais Alimentos, Programa de Aquisição de Alimentos, Agroecologia, etc, foram capazes de retirar da invisibilidade um setor econômico surpreendentemente moderno e produtivo. A sociedade brasileira passou a acompanhar, com certo espanto, o desenvolvimento rápido de um setor econômico que não conhecia até então. A Agricultura Familiar brasileira que começávamos a perceber com maior evidência era não só numerosa, mas altamente produtiva, competitiva e capaz de responder rapidamente aos estímulos das políticas públicas a que, pela primeira vez na história, passara a ter acesso.

Para ilustrar o descaso dos governos anteriores com esse enorme contingente de trabalhadores e trabalhadoras do campo, basta registrar que o Primeiro Plano de Safra da Agricultura Familiar só aconteceu em 2003. Antes disso, só a agricultura patronal tinha direito a um Plano de Safra, com crédito, recursos e políticas públicas para estimular a sua produção. A ideia que preponderava até então era de que os agricultores e agricultoras familiares eram público alvo de políticas de assistência social, não de políticas econômicas de estímulo à produção.

Mas é preciso compreender que esses processos de exclusão são ainda mais perversos e violentos quando examinados à luz das rotinas da máquina pública. O Censo Agropecuário do IBGE é um bom exemplo disso. Trata-se de um censo que deve ser realizado a cada dez anos e que tem por objetivo oferecer à sociedade o retrato mais fiel possível do meio rural brasileiro. Pois bem, acreditem se quiserem, mas até 2006 o Censo simplesmente desconhecia a existência da Agricultura Familiar. Não registrava. Ignorava. Fazia de conta que não existia. A enorme e qualificada produção da Agricultura Familiar e dos assentados da reforma agrária era oficialmente descartada.

Por óbvio, isto precisava mudar.

À época (2005 – 2006) foi realizado um intenso, extenso e qualificado trabalho, coordenado pelo Ministério do Desenvolvimento Agrário, para criar as condições técnicas e científicas necessárias para que o IBGE pudesse medir com exatidão o tamanho e a importância da Agricultura Familiar na agropecuária brasileira. Hoje, dez anos depois, pode parecer que foi apenas e tão somente uma decisão técnica encaminhada em conjunto pelo IBGE e pelo MDA, sem maiores contratempos, mas não foi. Tratou-se de uma quase batalha, de uma ruptura com os padrões vigentes na máquina pública que só foi possível superar com a orientação firme e comprometida do centro do governo.

Tempos depois, quando os resultados do Censo foram divulgados, a primeira reação do chamado “agronegócio”, ou seja, da agricultura patronal, foi de desqualificar as informações e atacar a qualidade técnica do trabalho do IBGE. Uma reação que, a bem de verdade, foi derrotada rapidamente dada a fragilidade dos seus argumentos.

Quando os dados do Censo foram tornados públicos, pela primeira vez na história o país pode conhecer e reconhecer as verdades sobre o seu meio rural. E elas não pareciam em nada com aquilo que por séculos tentaram semear no nosso imaginário. O Censo mostrou com absoluta clareza que a Agricultura Familiar era 89% mais produtiva que o modelo tradicional e com apenas 24,3% da área agricultável participava com 38% do valor bruto da produção. Mais: que era a Agricultura Familiar que produzia 70% dos alimentos consumidos diariamente pela população brasileira. Além disso, as informações extraídas do Censo mostravam que o modelo produtivo das AF era ecologicamente mais sustentável, gerava mais emprego e renda e produzia alimentos de melhor qualidade. Simples e claro assim. E isto, por si só, justificava as ações do governo de ampliar, ano após ano, os volumes de crédito, as políticas de fortalecimento e os recursos públicos para a Agricultura Familiar. Foi um duro golpe nos grandes proprietários que haviam se acostumado a amealhar todo o orçamento público para os seus interesses.

Agora, dez anos depois, ficamos sabendo que o governo golpista decidiu realizar o novo Censo Agropecuário sem medir o tamanho e a produção da Agricultura Familiar e dos assentamentos de reforma agrária. A justificativa é risível: falta de recursos. Eles que já acabaram com o Ministério do Desenvolvimento Agrário e precarizaram todas as políticas públicas voltadas para a Agricultura Familiar e para a Reforma Agrária querem mais uma vez jogar esses milhões de agricultores e agricultoras na invisibilidade. Fazem o jogo sujo dos grandes proprietários de terras que querem abocanhar cada vez mais o crédito e os recursos públicos destinados à produção agropecuária. Se foram cruéis extinguindo o Ministério do Desenvolvimento Agrário e destruindo as políticas públicas de estímulo à agricultura familiar, agora estão sendo sádicos ao tentar, mais uma vez, oficializar uma invisibilidade mentirosa, que a vida real já desmentiu.

Realizar o Censo Agropecuário sem medir o tamanho e a produção da Agricultura Familiar e dos assentamentos de Reforma Agrária é uma manipulação grosseira, um acinte à inteligência, além de um gesto sádico e cruel. É a cara deste governo golpista.

Guilherme Cassel foi Ministro do Desenvolvimento Agrário (2005-2010) e é Auditor Fiscal, aposentado, da Secretaria da Fazenda RS.

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