Capitalismo e sociabilidade

O processo de industrialização tardia no Brasil transcorrido nas décadas de 1930 e 1980 foi desprovido de reformas clássicas do capitalismo contemporâneo (agrária, tributária e social), o que resultou em padrão de sociabilidade profundamente deformado. Sem regime democrático sustentado no tempo, a desigualdade prevaleceu secundarizada, tanto pela mobilidade social como pelo consumismo.

Desde o final do século passado, o avanço da desindustrialização paralelamente à generalização das ocupações de serviços parecia apontar para outro padrão de sociabilidade. A sustentabilidade democrática patrocinadora do desenvolvimento distributivista produziu importante luta entre os valores modernos e mercantis.

Diante disso, o presente ensaio pretende oferecer elementos que possam contribuir no entendimento da percepção e valores dos trabalhadores de serviços residentes na periferia de São Paulo. Conforme registra a mais recente pesquisa da Fundação Perseu Abramo, seus valores e percepção distinguem-se da antiga classe trabalhadora industrial.

A industrialização tardia e a sociedade de consumo

Nas décadas entre 1930 e 1950, acelerou-se o processo brasileiro de industrialização, com a modernização de setores industriais tradicionais (alimentos, têxteis, calçados, móveis) e a formação dos setores industriais mais complexos (aço, petróleo, alumínio, químicos e farmacêuticos). Além disso, neste mesmo período, emergiram mudanças significativas no processo de comercialização dos produtos, com o surgimento dos supermercados, shopping centers, cadeias de lojas de eletrodomésticos, revendedoras de automóveis e lojas de departamento.

As relações entre a alteração na oferta de produtos e na circulação de mercadorias implicaram novos hábitos de vestuário, alimentação, higiene pessoal, limpeza da casa, entre outros, o que ensejou um novo padrão de consumo. Tratou-se de singular combinação das mudanças no sistema produtivo com a nova estrutura social acompanhada ainda por transformações profundas na dinâmica de consumo.

Durante esse período a industrialização acelerada não poderia deixar de representar também a urbanização caótica e desenfreada. Dessa forma, a estrutura rígida do campo cedeu lugar à sistemática competitiva da cidade, com a extrema pobreza e a miséria sobrepujadas pela esperança e desejo da migração.

Além disso, a tradicional família conjugal e de compadres e vizinhos deu lugar à família unicelular, de pais e filhos, e sem cultura de vizinhança e compadrio. A antiga educação pelo trabalho foi substituída pela educação escolar.

Nesse processo, o imigrante estrangeiro pôde usufruir de sua pequena vitória na luta por melhores posições sociais, dada a sua melhor posição financeira de saída, pois muitos passaram de mascates a empresários e de trabalhadores especializados converteram-se em profissionais liberais. A mesma sorte, contudo, não transcorreu com os migrantes rurais nacionais, mesmo que a sua situação tenha melhorado relativamente, a pobreza do campo terminou sendo substituída por não mais do que algumas tarefas de pouca qualificação e de baixa remuneração nas cidades. Os negros urbanos, em sua grande maioria, permaneceram confinados ao trabalho subalterno, rotineiro e mecânico.

Tais mudanças e permanências revelaram como o capitalismo tardio criou a ilusão de que as oportunidades econômicas seriam iguais para todos. Na realidade, a mercantilização da sociedade foi a que se apresentou como o único denominador comum.

No topo dessa sociedade abrigou-se um pequeno conjunto de capitalistas, banqueiros e industriais menos interessados em liderar o desenvolvimento econômico do país e mais interessados em tirar proveito da ação do Estado e da atuação da grande empresa multinacional. Na faixa intermediária, acotovelaram-se uma classe média alta de profissionais em busca da qualificação fundada no ensino superior e uma classe média baixa de operários à procura de especialização.

Na base dessa pirâmide, por fim, as incontáveis famílias de trabalhadores comuns subsistiram, com migrantes recém-chegados e de citadinos empobrecidos de diversas partes do país. Essa mobilidade social terminou se transformando no grande charme do capitalismo tardio.

De todo o modo, percebeu-se que, de um lado, a separação entre os distintos segmentos sociais assentava-se na hierarquia rígida dos trabalhos e remunerações urbanas e industriais. De outro, o elemento de convergência terminou sendo o atendimento de certas necessidades e desejos de consumo.

Neste sentido, nota-se como o processo de diferenciação do trabalho e a generalização do consumo se deram no mesmo compasso. A corrida pela ascensão social apresentou-se menos como um fruto do progresso industrial e tecnológico e mais como uma corrida de miseráveis, pobres, remediados e ricos pela atualização dos padrões de consumo.

Desse descompasso entre a produção industrial e a circulação mercantil é que emergiu a modernidade interrompida, cujo desenvolvimento capitalista foi acompanhado pela deformação da sociabilidade brasileira.
O desenvolvimento concentracionista e o consumo como diferenciação social

Sem contestação, os valores capitalistas foram reinventados entre as décadas de 1960 e 1980. Enquanto o privatismo patriarcalista da casa-grande se prolongou no familismo empresarial, a desvalorização do trabalho herdado pela escravidão se redefiniu na cisão entre as funções intelectuais e as tarefas manuais.

Da mesma forma, a reverência à hierarquia das ordens tradicionais se transfigurou na suposta concorrência que seleciona superiores e inferiores, assim como a ideia de país tomado como negócio, não como nação, ganhou fôlego redobrado. Isso tudo porque a aspiração à ascensão individual no Brasil não se lastreou no progresso técnico, mas na corrida pelo consumo.

Em contrapartida, os valores modernos foram obstruídos por grandes barreiras. A secularização, o racionalismo e a ilustração, capazes de inculcar as ideias de autonomia, igualdade e liberdade, trouxeram consigo os conteúdos éticos e humanistas que não ecoaram diante dos limites impostos pela lógica utilitarista e mercantil vigente no Brasil.

Em síntese, a ausência dos valores modernos capazes de refrear as aspirações mercantis mais primitivas possibilitou a exploração econômica e a dominação política perpetuadoras das desigualdades sociais fundadas num capitalismo sem iluminismo. Assim, pode-se dizer que o industrialismo foi sobrepujado pelo consumismo como lógica de organização social.

Tal alteração ocorreu precisamente por ocasião do Golpe de 1964, quando a política econômica se mostrou capaz de combinar o crescimento econômico com a concentração de renda. Dessa forma, a acumulação de lucros e riqueza, ao mesmo tempo em que patrocinou a diferenciação entre os salários, possibilitou a reprodução desigual das capacidades de consumo.

A deformação da sociedade instalada foi fraturada em três dimensões distintas. De um lado, o mundo desfrutado por ricos e privilegiados que tinham no consumo de luxo e regado pela ostentação e suntuosidade a principal característica.

De outro lado, o mundo permeado pelos vários segmentos de classes médias e remediados, cujo tipo de consumo se apresentou enquanto simulacro e imitação do mundo dos ricos. Por fim, o mundo povoado por pobres e miseráveis aprisionados pelos salários baixos assentados na reprodução precária do padrão de consumo, sem a capacidade de consumir massiva e sustentadamente no médio e longo prazos.

Mas as agruras impostas ao país pela ditadura militar não se restringiram ao plano político e econômico, elas também se espraiaram pela esfera social e cultural. Isso porque ao cerceamento do espaço público seguiu-se, imediatamente, o estabelecimento de uma opinião privada. Disfarçando-se em meio a entretenimentos ou revestindo-se de objetividades, as empresas televisivas e jornalísticas formavam uma pequena confraria que, com a anuência do governo militar, patrocinavam a instauração de uma indústria cultural americanizada no país.

A prioridade da TV e do entretenimento sobre a informação e a educação sob a preeminência de empresas privadas sobre a opinião pública promoveu o triunfo de normas mercadológicas sobre princípios modernizantes. Desse modo, a sociedade brasileira passou diretamente da deseducação para a massificação, criando consumidores sem que se houvesse formado cidadãos.

A partir dos anos de 1990, o padrão deformado de sociabilidade durante a industrialização tardia desacompanhada das reformas do capitalismo contemporâneo sofreu as consequências do neoliberalismo e da globalização financeira. Dessa forma, o desenvolvimento capitalista impôs obstáculos ao florescimento e à consolidação da modernidade no país.

O desenvolvimento distributivista e a luta entre valores modernos e mercantis

Em comparação com os últimos cinquenta anos, o Brasil experimentou nos governos Lula e Dilma um momento inédito de transformação da sua estrutura social. As políticas de elevação real do salário mínimo, de expansão da oferta de crédito e de ampliação dos programas de transferência de renda, entre outras, estimularam o crescimento do PIB com base no avanço do mercado interno e originaram um tripé socioeconômico virtuoso caracterizado pelo aumento do mercado formal de trabalho, redução da pobreza e melhora na distribuição de renda.

Entretanto, a retração do ciclo econômico e a crise política provocaram a interrupção do processo de inclusão social, de distribuição de renda e de mobilidade social. Se, por um lado, tal fenômeno desperta o medo ou o ressentimento pelo declínio social, por outro lado, a crise reabre uma janela de oportunidades fazendo com que parte da população perceba a importância, nas suas trajetórias individuais, das políticas públicas implementadas pelo chamado período do lulismo.

Essa combinação de fatores tem como uma de suas principais consequências a formatação de uma nova subjetividade entre as camadas populares das grandes cidades do país. Trata-se, em síntese, de um grupo social cujos valores e votos permanecem em disputa, defendem o empreendedorismo, mas apoiam intervenções do Estado e comungam relações de comunidade e vizinhança.

Ao mesmo tempo, defendem a moralidade tradicional, rechaçando a repressão extrema, e aceitam as novas configurações familiares. Por outro lado, defendem o livre-funcionamento do mercado, ainda que reclamem por maiores investimentos governamentais nos serviços e equipamentos públicos.

Para compreender essas mudanças em sua inteireza é preciso empreender uma análise que ultrapasse as leituras baseadas nas informações de renda e rendimentos. É preciso, neste sentido, incorporar outras variáveis como a estrutura ocupacional, o acesso a mercadorias privadas e aos serviços públicos, bem como os padrões de consumo, entre outros.

Todos são elementos que permitem uma aproximação, ainda que muito preliminar, das preferências desse novo grupo social. Sob essa perspectiva que se evidencia o estrato laboral que ascendeu socialmente e economicamente nos últimos anos na forma de uma nova classe trabalhadora urbana assentada nos serviços.

Do ponto de vista ocupacional, tratam-se de vendedores, balconistas, motoristas, motoboys, profissionais de telemarketing e diversos tipos de auxiliares que atuam em empresas e comércios, como recepcionistas, cabeleireiros, garçons e uma heterogeneidade de trabalhadores qualificados. Em relação à educação, por exemplo, os seus integrantes na maioria são aqueles que utilizam as escolas públicas ou escolas particulares com mensalidades mais baixas.

No caso da saúde, são aqueles que necessitam dos hospitais públicos ou de planos de saúde mais baratos. Esse balanceio instável entre os serviços públicos e as possibilidades privadas mais “em conta” se reproduz em outras esferas: habitação, transporte, segurança, alimentação, cultura, lazer, entretenimento etc.

Por esses motivos, ao contrário da classe média estabelecida que se queixa dos impostos inadvertidamente, a nova classe trabalhadora percebe com contrariedade o aumento de impostos, taxas e tarifas, pois sua elevação lhe afeta mais diretamente o poder de compra. Mas ela também reconhece a importância e a necessidade dos serviços públicos, pois depende deles mais frequentemente.

Essa nova classe trabalhadora de serviços trabalha, em grande medida, de dez a catorze horas por dia, tendo, muitas vezes, dois ou mais empregos. Trabalha de dia e estuda a noite e, nas grandes cidades, enfrenta horas de transporte público enquanto se desloca entre a casa e o trabalho.

Também por esses motivos, ao contrário da classe média tradicional que tudo atribui ao mérito individual, a nova classe trabalhadora percebe sua ascensão como fruto do esforço individual e de privações, mas sabe que precisa contar frequentemente com alguma rede de solidariedade e laços fraternos entre os amigos, os vizinhos e a igreja. Mais do que outros estratos, esse grupo se beneficiou da expansão do crédito ao consumidor e está satisfeito com a possibilidade de adquirir novos bens considerados indispensáveis para o conforto doméstico e para a melhora na qualidade de vida na cidade.

Por esses motivos, ao contrário da classe média estabelecida, esse grupo queixa-se menos das taxas de juros abusivas e está mais disposto a encontrar sua sociabilidade pelos caminhos do consumo, o que não equivale ao consumismo, pois trata-se ainda do consumo de bens duráveis como eletrodomésticos e eletroeletrônicos. Esse conjunto de ambiguidades leva a crer que a cultura política da nova classe segue sendo uma questão em disputa.

Para compreender a relação entre as preferências econômicas e políticas dessa nova classe trabalhadora é fundamental considerar que o aumento do poder de compra possibilitou o acesso a novos canais de formação e informação. Mais do que isso, a presença, sobretudo, de um número significativo de jovens, cujas opiniões se irradiam certas opiniões políticas e eleitorais.

A progressiva ampliação do acesso à educação e à internet tem promovido uma importante mudança em suas exigências e interesses políticos. No atual contexto, o eixo da formação da opinião familiar ou comunitária passa a ter um peso mais decisivo dos jovens.

A propósito, a maior parte desses jovens tem níveis de escolaridade mais elevados do que os dos pais, está conquistando uma melhor inserção profissional e segue atenta para as mudanças tecnológicas. Por isso eles são ouvidos com maior atenção dentro das suas famílias e comunidades, atuando como referências importantes para a formação de opinião, concorrendo com a própria televisão.

Do ponto de vista religioso, o avanço do neopentecostalismo não significa necessariamente uma adesão imediata à chamada teologia da prosperidade. A igreja é mais importante do que a teologia, ou seja: o espaço de convívio e acolhimento acaba cumprindo a função de criação de laços e de prestação de serviços.

Essa disposição para a mudança, entretanto, passa por marcos ambivalentes, pois essas pessoas acreditam na política, mas não creem em partidos. Ademais reconhecem a importância da coletividade, mesmo que almejam crescer individualmente, assim como buscam transformações, embora pouco afeitos a rupturas e anseiam por novas ideias, ainda que pragmáticos. Em suma, esse novo caldo cultural exigirá renovações tanto na forma como se realiza a política partidária quanto no conteúdo das políticas públicas que se implementam.

A sociedade de mercado entre o moderno e o mercantil

Diante de tudo isso, considera-se a mistura de valores do individualismo com os de solidariedade. De um lado, o anseio pela ascensão no trabalho e o sucesso pelo mérito combinando-se, de outro lado, com os valores mais solidários e coletivistas relacionadas à atuação do Estado, à universalização de direitos, à ampliação da inclusão social.

Permeiam, neste sentido, a visão de mundo e o imaginário da nova classe trabalhadora de serviços nas periferias de São Paulo. Sendo assim, qualquer tipo de explicação dualista: progressistas vs. conservadores, esquerda vs. direita, liberais vs. estatistas pode incorrer numa simplificação grosseira, feita ou por desconhecimento e ingenuidade ou por má fé e oportunismo.

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