Em novembro de 2016 veio à luz para os interessados na acidentada e tortuosa trajetória de construção da democracia no Brasil, um livro singular. Escrito há quarenta anos por um grupo de militantes políticos encarcerados pela Ditadura Militar, em São Paulo, convencidos de que a reclusão imposta não os retirava da responsabilidade de prosseguir, no combate ao regime, com os precários instrumentos que tinham nas mãos: a denúncia da violência e do arbítrio e o esforço intelectual de fazer compreender as raízes e a prática quotidiana da violência de Estado que se impusera ao país.

“A Repressão Militar-Policial no Brasil, o livro chamado João” agora editado por Expressão Popular, dormiu, talvez indevidamente, por quatro décadas. Saiu clandestinamente da prisão. E do país. Ganhou uma primeira impressão artesanal, na França, pelas mãos de um militante exilado, José Carlos Vidal, para cumprir o objetivo de denunciar o regime militar e esclarecer os leitores sobre a organização da violência de Estado voltada contra os trabalhadores e para aniquilar militantes das lutas populares naquele momento da história do Brasil.

Num país que nos condena historicamente a andar em círculos, essa reflexão metódica se debruça sobre as raízes do Golpe Civil-Militar que se impôs ao Brasil em abril de 1964 – sua base ideológica, sua concepção programática, a montagem do aparato repressivo, as técnicas de tortura contra os opositores – e adquire atualidade no momento em que os mesmos segmentos sociais consumam um novo  Golpe, agora contra a Constituição de 1988, para tentar impor uma agenda derrotada nas urnas em quatro eleições sucessivas.

Em suas semelhanças e em suas diferenças cabem ambos os golpes, o de abril de 1964 e o de abril/agosto de 2016, na moldura maior de uma sociedade que se debate no dilema, até aqui, aparentemente insanável entre a Casa Grande e a Senzala: a nação não consegue romper a lógica da exclusão que produz criminosas desigualdades sociais porque, entre outras razões, suas elites econômicas e sociais – herdeiras das concepções que justificaram quatrocentos anos de exploração do trabalho escravo – são impermeáveis à cultura democrática e republicana tal como se desenvolveu, no ocidente, em meio aos conflitos de classe engendrados pela expansão capitalista, desde o iluminismo.

O livro abre uma oportunidade para o debate em torno da inegável capacidade de recomposição do conservadorismo das classes dominantes brasileiras quando se trata de defender seus privilégios e reafirmar a intocabilidade dos estamentos cristalizados no corpo social ao longo de cinco séculos. Para tanto, o conservadorismo se utiliza das Forças Armadas como ocorreu ao longo de século XX em diferentes ocasiões, particularmente no período Vargas, em 1964 com a deposição de Jango e agora serve-se das castas que vieram ganhando forma dentro do aparelho de Estado, nos três poderes da República, em particular no Judiciário, precisamente o poder que elide qualquer controle social, e no Ministério Público.

Os autores, ao se debruçarem sobre a montagem e os métodos do aparato repressivo da Ditadura Militar, produziram uma referência documental indispensável para o registro, a compreensão e para a denúncia do que significou sua ação até o momento em que o livro foi escrito. “O Livro chamado João” inclui uma lista nominal – que jamais foi contestada – de militantes revolucionários assassinados pela máquina de terror acionada pelo regime. E introduziu na agenda das lutas da resistência à ditadura a denúncia dessa categoria monstruosa que produziram os regimes militares no Cone Sul do Continente, naqueles anos: “os desaparecidos”. Contribuiu, assim, para desvelar a face do terrorismo de Estado que se impusera ao país a partir do golpe de 1964.

Cinquenta e três anos depois, o Brasil mergulha – no labirinto circular que nos devolve aos padrões de exploração do trabalho vigentes no século XIX, recompondo o círculo de ferro que sustentou a formação da riqueza do país: o tráfico de pessoas (o tráfico negreiro); o monopólio da terra (o latifúndio); a superexploração do trabalho (a escravidão dos negros e índios); e o direito de herança. Se não rompermos com esses fundamentos – hoje polidos com o verniz da contemporaneidade dita neoliberal – o Brasil não conseguirá superar a dualidade criminosa que marca nossa História há quinhentos anos. Essa dualidade que contrapõe Casa Grande e Senzala e reproduz por um lado uma elite incapaz de conviver com a democracia e, por outro, uma vasta maioria social que não consegue ascender à condição de cidadania.

Sobre os autores, cumpre registrar: eles não renunciaram ao pensamento. Com os precários materiais de que dispunham, realizaram um árduo exercício de compreender a complexa engrenagem de opressão, violência, tortura e morte que os colheu durante os anos de chumbo, para resistir a ela como um imperativo de sobrevivência de sua própria humanidade.

Neste momento em que nos aproximamos do aniversário do Golpe de 1964, o livro “A Repressão Militar-Policial no Brasil – o Livro chamado João” nos ajuda a refletir sobre a experiência histórica da resistência à ditadura da plutocracia e dos generais e tirar dela lições que podem vir a ser úteis para a resistência à ditadura da toga e, mais uma vez, da plutocracia sempre presente.

*Pedro Tierra (Hamilton Pereira) é poeta. Ex-Secretário de Cultura do Distrito Federal. Foi militante da Ação Libertadora Nacional-AL.

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