Pedro Tierra: Os sentidos do 19 de março e a reconstrução da democracia
O Brasil real parece dar a volta sobre si mesmo para reencontrar o caminho traçado pela experiência conduzida por Lula e Dilma
Por: Pedro Tierra*
Entonce o nortista
pensando consigo
diz: isso é castigo,
não chove mais não.
Ai, ai, ai, ai.
Apela pra março
que é o mês preferido
do santo querido
senhor São José…”
(Luiz Gonzaga)
“Amanhã, nos vemos em Monteiro”, convidou Luiz Inácio Lula da Silva, pelas redes sociais. Talvez já soubesse que seria recebido por uma multidão. E Monteiro, pequena cidade da região da Borborema paraibana, se fez maior para receber tantos visitantes que acorreram ao convite de Lula, nesse 19 de março.
Para além da disputa política que determina qualquer gesto dos atores, dos personagens que encarnam o dilema entre a Casa Grande e a Senzala, em que se debate a sociedade brasileira há cinco séculos e alcança uma instância tirânica nesses primeiros meses de 2017, é necessário deter o olhar sobre os sentidos simbólicos de cada gesto.
A política, despida do seu sentido simbólico, é apenas uma vasta tristeza. Reduz-se à intriga, à mesquinharia, à impostura, à traição, ao miúdo exercício de equilibrar-se no poder sem outra finalidade. E morre. E, então, nos mergulha na noite dos longos punhais. Quem traz consigo – embora nem sempre saiba explicitar – os sentidos simbólicos mais generosos de uma sociedade, de qualquer sociedade, é quem se identifica com a produção material da vida e, portanto, com a capacidade criar o novo, de despertar esperanças.
A especulação financeira, a especulação imobiliária, a usura, a agiotagem, não inspiram poemas ou canções… Essas, não entendem a lógica da acumulação, são criações humanas que só alcançam seu sentido quando partilhadas…
Lula desembarcou em Monteiro precisamente no dia 19 de março, dia de São José. Aquele dia-limite em que, reza a tradição, se a chuva não veio, não virá mais. É o último portal a anunciar a chegada do longo estio. Da seca feroz. E a procissão de desgraças que arrasta consigo. Mas, Lula chegou com as águas. Não as águas imponderáveis que descem dos céus, ou não, como dádivas das mãos do santo familiar. São as águas conduzidas pelas mãos dos trabalhadores que construíram ao longo de 217 km o Eixo Leste que capta águas do Rio São Francisco e percorrerá o agreste de Pernambuco, Paraíba com destino ao Rio Grande do Norte. Essas águas que alcançam a Paraíba são águas da tenacidade – talvez a mais característica virtude – dessa gente que vive no semiárido brasileiro.
De pouco valerão os esforços dos que se empenham em apropriar-se do significado simbólico da transposição. Soará falso. Soará como uma usurpação. Nenhum deles, seja Alckmin, seja Temer, escapará do olhar de troça da gente do povo nordestino que os vê como personagens de circo: patéticos, postiços. Serão assunto fecundo para a irreverência dos cantadores de feira. Nenhum deles será rebatizado nas águas do São Francisco, banhado nas águas do São Francisco como Lula, neste 19 de março, quando a gente do sertão se vê diante de um impossível rio de águas permanentes a percorrer a terra avara, de que falava João Cabral, sem ser devorado por ela.
Luiz Inácio, o filho de Caetés, ao lado de Dilma Rousseff, Presidente eleita, deposta pelo golpe de estado, tem hoje a plena consciência do papel que lhe cabe nessa encruzilhada. Sabe que ela nos empurrará de volta à condição de colônia ou exigirá de nós recuperar a trajetória conduzida por ele que nos levava à condição de nação contemporânea. E se serve desse momento para enviar duas mensagens simbólicas ao país: venho beber dessa água que me é servida pelas mãos do povo para prosseguir na luta, não estou fora dela; e venho mergulhar no coração do povo, fonte da energia política que me justifica e me sustenta perante a História. Entendam: não há solução para o Brasil que não inclua essa gente.
Poucos terão sido os momentos vividos pelos brasileiros, ao longo dessa trajetória de quinhentos anos, repleta de assombros, tão carregada de significados simbólicos como esse 19 de março, em Monteiro, na Paraíba.
O Brasil real, castigado pela vilania do golpe de Estado, fruto da conspiração e da traição, mais uma vez, de um grupo de privilegiados e exposto como catástrofe ante os olhos do mundo, pelo governo ilegítimo que dele resultou, parece dar a volta sobre si mesmo para reencontrar o caminho traçado pela experiência conduzida por Lula e Dilma, inseparável da participação popular na reconstrução da própria democracia.
*Pedro Tierra é poeta. Ex-presidente do Conselho Curador da Fundação Perseu Abramo.