AI – 5: lições de 13 de dezembro de 1968, um golpe dentro do golpe
1968. Quatro anos depois de desferir o golpe de estado de 1º de abril de 1964, a coalizão civil-militar que depôs o presidente eleito João Goulart, já no primeiro ano fechou o Congresso, aboliu os Partidos Políticos, interveio em Sindicatos e Associações de trabalhadores, cassou mandatos de parlamentares e exonerou ministros nos tribunais, viu-se isolada. Mesmo em relação a expressivos segmentos sociais conservadores que haviam apoiado o golpe, na primeira hora.
Para fazer frente ao isolamento, a decisão tomada pelo alto escalão das Forças Armadas, que compunha o Conselho de Segurança Nacional, foi aprofundar o caráter repressivo do regime, com o objetivo de deter as manifestações dos movimentos sociais, particularmente o movimento estudantil, no Rio e em S. Paulo e outras capitais do país, mas também as primeiras mobilizações do movimento operário, como ocorreu em Osasco e Contagem.
Além disso, ainda que de maneira débil, sobreviviam manifestações de oposição dentro do Parlamento que havia sido severamente desfigurado em sua composição pelas cassações de mandatos, agredido em suas funções institucionais e posto sob controle com as duas siglas criadas pelo próprio regime: ARENA e MDB.
Sob o pretexto de responder a uma dessas manifestações ocorridas no plenário da Câmara, com o discurso do Deputado Márcio Moreira Alves (RJ) que conclamava as mães a não permitirem que seus filhos participassem dos desfiles escolares em comemoração ao 7 de setembro, ao lado dos militares, o regime preparou um veneno brutal e duradouro. 1968, 13 de dezembro, o Marechal Costa e Silva decretou o Ato Institucional no 5. Tratou-se, como se definiu na época, de “um golpe dentro do golpe”, uma aberração jurídica composta por apenas 12 artigos. Que abre seu texto anunciando: “São mantidas a Constituição de 24 de janeiro de 1967 e as Constituições Estaduais(…)” (art. 1o), para já na linha seguinte deixar claro que: “O Presidente da República poderá decretar o recesso do Congresso Nacional, das Assembleias Legislativas e Câmaras de Vereadores, por Ato Complementar, em Estado de Sítio ou fora dele, só voltando os mesmos a funcionar quando convocados pelo Presidente da República”. (art. 2º)
O texto incorpora em artigos seguintes a expressão “(…) sem as limitações previstas na Constituição” como fórmula explícita para anular de fato o anúncio do art. 1o e abrir portas e janelas para o arbítrio dos generais, no topo da hierarquia do Estado e – abaixo deles – os tiranetes de província, os funcionários obscuros, os censores, qualquer personagem dotado de ínfima parcela de poder, à frente do último guichê do serviço público, no último município do país. Essa monstruosidade jurídica não se esgotou em si mesma.
Além do impacto imediato destinado a responder a uma situação de isolamento social e político da ditadura, no final daquele ano turbulento, pavimentou o caminho para toda a sorte de arbitrariedades. Legalizou assassinatos e “desaparecimentos”, radicalizou a censura à imprensa e às atividades culturais, institucionalizou a tortura como método de tratamento dos opositores. E, a partir daí, disseminou silenciosamente no aparelho de Estado com as inevitáveis repercussões na sociedade, um conjunto de hábitos e comportamentos duradouros, uma “cultura” de Estado assentada sobre o autoritarismo e o arbítrio.
O Ato Institucional no 5 consuma, aos olhos dos seus autores, o bloqueio definitivo do Projeto de Desenvolvimento que amadurecera ao longo dos anos quarenta e cinquenta sob a liderança de Vargas, JK e Jango e delineou seu alcance estratégico nas formulações das Reformas de Base. Um Projeto Nacional de Desenvolvimento que contou com a contribuição e a crítica da inteligência brasileira mais avançada e mais reconhecida internacionalmente.
Nomes como Celso Furtado, Josué de Castro, Paulo Freire, Darcy Ribeiro, Anísio Teixeira, Caio Prado, Antônio Cândido, Octávio Ianni, Florestan Fernandes, Miguel Arraes, Leonel Brizola, Herbert de Souza, Francisco Julião que, naquele momento se encontravam no exílio ou, os que permaneceram no país, reduzidos ao silêncio ou ao cárcere. O poder ditatorial imaginou sepultar com o AI-5 as esperanças populares de superar o subdesenvolvimento e enfrentar o maior flagelo que marca historicamente a sociedade brasileira: a concentração da terra, da riqueza e do conhecimento. As desigualdades sociais e regionais. A opulência e a fome. A violência como parte constitutiva das relações sociais e individuais.
A formação histórica expressa por Gilberto Freire em “Casa-Grande & Senzala”. Essa aberração institucionalizada duraria formalmente por dez anos. Foi derrubada em 1o de janeiro de 1979 pela Emenda Constitucional no 11 assinada pelo quarto ditador, o General Geisel. Formalmente apenas. Seus efeitos explícitos foram cedendo sob o combate dos setores sociais que expunham nas ruas seus anseios por uma democracia sem adjetivos. Os efeitos invisíveis, sedimentados imperceptivelmente no comportamento quotidiano, não se tornaram alvo das preocupações dos setores mais avançados da sociedade, não ocuparam espaço relevante na agenda da democratização, não se converteram em bandeiras mobilizadoras.
Seus efeitos residuais permanecem aí alimentando o mais terrível dos sintomas da doença social que nos aflige: a indiferença. A indiferença diante das desigualdades sociais; a indiferença diante da violência quotidiana no espaço familiar e no espaço público; a indiferença diante da dor do outro; a indiferença diante da Política: essa é a sementeira onde se cultivam as raízes do fascismo social que nos ameaça como cidadãos e ameaça as instituições reconstruídas ao longo dos últimos trinta anos, agora postas em cheque pelo Golpe de 2016.
A produção social do medo que caracteriza os Estados autoritários ou totalitários, o desmantelamento das organizações populares, durante duas décadas de repressão permitiram, mais uma vez, uma transição pelo alto, entre a derrota da ditadura e a promulgação da Carta Constitucional de 1988, quando manteve os cidadãos tutelados ao limitar sua participação no processo político ao gesto ritual de depositar o voto na urna a cada dois anos. Não alcançamos no Brasil, como ocorreu em outros países da América Latina que viveram sob regimes ditatoriais semelhantes ao que se impôs aqui entre 1964 e 1985, ou até mais ferozes, virar a página sombria daquele período.
Não esclarecemos a ignomínia das torturas, dos assassinatos, dos “desaparecimentos”. Não levamos os responsáveis por crimes contra a humanidade a julgamento. Como ocorreu no Chile e na Argentina. Esse processo permanece inconcluso e nos cobra solução há meio século. Por isso os setores sociais que lhe deram sustentação retornam em 2016. Tomam de assalto o Estado por meio de um golpe e estão, nesse momento, empenhados em saquear os direitos conquistados e em vender a preço baixo os recursos naturais do Brasil, antes que a população acorde. Em resumo voltam para reafirmar os mesmos objetivos: manter o país nas condições de desigualdade social que marcam nossa história de cinco séculos; abandonar qualquer veleidade de se afirmar como uma nação independente; seguir na condição de neocolônia oferecendo nossos recursos naturais e matérias-primas à voracidade do capital.
Um dos efeitos permanentes do período de vigência do AI-5 – como instrumento jurídico para assegurar os objetivos políticos do Estado autoritário – tem sido a assustadora despolitização da sociedade brasileira alimentada inicialmente pelo medo da participação social, e hoje, pela indiferença que dela decorre. Vivemos assim no que se poderia chamar de “uma sociedade da desinformação”, em que os cidadãos são levados a prescindir do conhecimento, e portanto, do compromisso com a superação, de fatos determinantes para a solução dos graves problemas com que a sociedade brasileira nos interpela ainda hoje: as criminosas desigualdades sociais e regionais, um Estado modelado para servir a poucos, um serviço de saúde cada dia mais mercantilizado, uma educação que não forma cidadãos, forma consumidores, um sistema de segurança que atua contra as populações mais pobres como se fosse uma tropa de ocupação. É por isso que exibimos a polícia que mais mata no mundo.
O Brasil precisa responder a si mesmo: que país desejamos ser no futuro próximo? Que Brasil estamos construindo para o bicentenário da independência? Para responder a essas questões na perspectiva das grandes maiorias sociais, devemos cumprir o resgate da memória daquele período. E recuperar a agenda das Reformas então proposta pelos segmentos populares para com ela nas mãos, redesenhar o Programa de transformações sociais compatível com os desafios do século XXI: a Reforma Agrária, a Reforma Urbana, a Reforma do Sistema Financeiro, a Reforma educacional e a Mudança da Lei de Remessa de Lucros (para o exterior). Essas eram as mais sensíveis.
E, hoje, cinquenta anos depois, permanecem as mais sensíveis, porque não foram realizadas. Para retomar “a Construção Interrompida” de que falava Celso Furtado é indispensável expor diante dos olhos das novas gerações o que formularam, naquele momento histórico, os pensadores e dirigentes políticos mais avançados e mais comprometidos com a construção de um país democrático e inclusivo. Não se pode afirmar que, com a concretização daqueles Reformas, o Brasil teria “alcançado por fim a felicidade coletiva”, mas sem dúvida, teríamos avançado na construção de uma nação capaz de assegurar a desconcentração da renda e da riqueza, a igualdade de oportunidades, o apreço pelas regras democráticas, o respeito à soberania popular, para nos afirmar como uma nação civilizada e digna de respeito ante os olhos do mundo. Brasília, verão de 2016.
*Pedro Tierra é poeta
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